I
Para Van Pacheco.
Um único e grande poema eu queria escrever
Feito calhas a arrastar ardores
Para as águas deste oceano turvo
Em que religiosamente nos deitamos
Feito pragas, cidades over, capitais
Da minha escassa imaginação
E suas cem cúpulas perdidas entre dois balões de papel
A carregar-me para onde, ó orixás,
Se não sou santo e não sois santos?
Se o odor do corpo dele me inebria
E traça rotas azuis sobre o edredom listrado?
Feito e desfeito o leito, mergulhamos, embora não
Haja mais trilhas, não haja mais filmes nem
Orações, somente nós & Nina & duas lágrimas misturadas
Salgando a polpa árida da língua.
Um grande e exclusivo poema eu queria escrever
Feito carma farol aflição
Mão estendida rumo ao vazio
Recado memória percalço e, talvez, a suavidade bruta e leitosa
De sua anca – onde agora descanso e, contudo, me calo.
***
PERANTE O TÚMULO DE WILDE
Para Nelson Baco.
Um ancião aponta os fios negros do bigode contra o céu.
Ele chora. Chora no instante em que a menina – pele branca, negro vestido, tatuagem colorida – dispara contra ele. Não, não foi bala. Em segundos, a eternidade aprisionada: de si para o desconhecido. Você vislumbra agora o monitor. Eu volto à cena. Há um modo de dizer adeus sem transbordar? As mãos buscam amparos em muros rugosos, rasgam-se, sagram-se. Escuta, escuta este grasnar duro dos gigantes de ébano. Eles anunciam o limiar em ouro, púrpura e jasmim. Eles nos conduzirão até outra campa e não haverá mais a necessidade inglória dos mapas ou dos vírus multiplicados por centenas de milhões de promessas e letargias. Nessa relva, pouco espanto. Recorda o lorde atravessando o canal, a fama e a ambição mancas. Não: você arremessa o seu corpo no gélido mar subterrâneo, entrega-se ao ópio melodioso com a um canto. Serenos, Shelley e Álvares de Azevedo assistem ao show, solam guitarras invisíveis e saltam graciosos pelo jardim. Nenhum socorro virá, Morrissey disse, e, quem sabe, penso eu, nenhuma comiseração nesses olhos que se escondem das máscaras de horror dos beijos das putas da fragrância áspera dos cigarros e do vinho a poluir de juventude o cenário outrora torpe das bandeiras festivas & sonhos em arco-íris brilhantes, as labaredas e o impulso da vida embalsamados nas asas do pássaro de bico curvo. Aponto os fios de meu bigode contra o céu e deposito um girassol a teus pés.
LIMA TRINDADE
maio 2017.
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Lima Trindade (Brasília, 1966) é mestre em Letras e reside em Salvador. Escreveu Supermercado da Solidão (LGE, Brasília, 2005) e os livros de contos Todo sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, São Paulo, 2005), Corações Blues e Serpentinas (Arte Pau Brasil/Escrituras, São Paulo,2007), O retrato: ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (P55, Salvador, 2014) e Aceitaria tudo (Mariposa Cartonera, Recife, 2015). Participou de diversas antologias de narrativas curtas, entre elas Tempo bom, (Iluminuras, São Paulo, 2010), org. Sidney Rocha e Cristhiano Aguiar, Geração Zero Zero (Língua Geral, Rio de Janeiro, 2011), org. Nelson de Oliveira, e 82: uma copa, quinze histórias (Casarão do Verbo, São Paulo, 2013), org. Mayrant Gallo. O seu livro de contos Todo sol mais o Espírito Santo foi publicado no México pela editora Calygramma, em 2014 com o título Todo el Sol en Espíritu Santo.
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Crédito da foto: Ricardo Prado