A permanência das não-coisas na poesia de Bruna Beber em Ladainha
Milena Britto
“Ando muito cansada dos cigarros
que eu fumo porque eles se fumam
sozinhos quando venta.
ando cansada de pólvora.”
Foi um mergulho em um poema, que durou a tarde toda de um domingo, que me fez mais intrigada sobre “Ladainha”, de Bruna Beber. Enquanto eu lia o poema I3., alguém próximo a mim tentava traduzi-lo pensando nos seus limites indecifráveis, afinal, quem pode definir “a densa metade/do invisível” sendo o próprio invisível algo que só existe pelo seu rastro? Entre o mistério do que estava sendo dito pelo sujeito-lírico pairava também o mistério de para quem era essa tentativa de descrição do impossível de ser descrito. O poema é um pouco o que o livro todo é, uma conversa expandida da poeta sobre o dia-a-dia da poesia que está por trás das coisas imediatas, geralmente isoladas em mostras perniciosas.
Retirando de nossa frente os símbolos, os discursos, os objetos, a própria língua, o que nos chama a atenção na nossa vida? O que esta natureza-viva faz em cada estágio de sua própria existência? Nesse poema, por exemplo, o humor da poeta traz uma tentativa de transformação do invisível “em um monstro engraçado”, como me disse a própria Bruna diante de meus questionamentos e tentativas de decifrar tudo o que dizia o poema (para poder alimentar a tradução em processo do mesmo por uma amiga). Esse “monstro engraçado” que se pretende a tradução da metade densa do invisível “sabe usar blusa de meia-estação” e tem uma “barriga de brejo que cresce nas patas”. Estas são linhas bem tecidas que procuram transmitir a complexidade da experiência e sua intensidade também. Toda a experiência de tentar descrever o invisível se transforma em ação da poeta a compor uma presença, uma forma de sentir o que está atrás das coisas nomeadas exatamente como força natural, colocando em evidência o paradoxo de ter em sua composição vários lugares da natureza: o reino animal, o humano, as geografias. Depois de tudo, entretanto, a sua morada é “nas cutículas, farelos e atrasos”, o que nos leva a achar que o sujeito do poema nos levou ao ponto zero de uma natureza não dominada pela razão. Pensei um pouco no conceito de serenidade que Heidegger também vincula ao que chama de pensamento meditativo: o pensamento que se dobra à reflexão se recusa a qualquer espécie de representação, além de jamais se deixar ser guiado pelo desejo, pelo querer.
I3.
Ladainha traz um revelador posfácio de Eduardo Sterzi e ali encontrei-me com o pensamento do poeta-crítico que diz “é, de fato, constante na poesia de Bruna Beber a presença decisiva de um resíduo de algo que se perdeu ou que está se perdendo, quase sempre um resíduo de comunidade (…)”. Em sua leitura, Sterzi também percebe uma estranheza nova neste livro que não apareceria assim fortemente nos anteriores. Eu concordo com ele e foi justamente esta estranheza aguçada que me moveu a ficar vários dias escutando esses barulhos estranhos que cada poema traz.
“Meus poemas agora duvidam entre a pedra/ marrom e a pedra verde-sabão, de cara vejo/ a suspensão confio a tudo que vai passar.”. Os poemas condensam as dúvidas a respeito da própria poesia, da poética do hoje, da violação dos lugares sagrados da criação. Essa maneira de dizer deslocando todos os elementos e questionando as linguagens das que a própria poesia é possível, não é simplesmente uma rebeldia ou um tiro para o alto. Acredito que seja a própria relação da poeta com o estado do dizer hoje, uma quase pergunta sobre a sua própria obra, o seu próprio fazer, esse “escrever” como proposta de algo.
“Escrever é irmão/ do andar e primo/ do voltar substitua” são versos da primeira estrofe do poema 97., que tanto bagunça o lugar da escrita quanto da sua relação com o tempo, que “é uma mula elástica em fuga”. Este poema tem um ritmo e uma proposta esquisitos que provocam um efeito de porta abrindo-se e fechando-se para o leitor. Cada estrofe tem 3 versos, sem rima, e vem intercalada com estrofes de um verso só de uma contra-música, uma espécie de música de fundo que a poeta ouve desde seu cotidiano comum, enquanto mergulha na decifração do que é escrever. Os versos que intercalam as estrofes trazem esse gosto de música popular, de rima fácil. Uma espécie de paródia proposta pelo sujeito lírico que acaba trazendo justamente um certo efeito “de comunidade” para o poema. Reunindo os três versos, eles próprios seriam uma estrofe que poderia ter sido desmembrada: No inverno é bom/No verão bombom/ Sair na rua de moletom. Essa brincadeira entre a filosofia do escrever e o questionamento de toda a poesia do mundo no tempo abrem uma boa passagem para pensarmos na vontade que Bruna Beber parece ter de deslocar as várias naturezas que se apresentam por trás das coisas para o lugar das próprias coisas.
O poema 23. (talvez seja prudente agora eu dizer que o livro traz três partes, com títulos que não sei se me atraem, e todos os poemas do livro tem como título números, o que faz parecer que são poemas enumerados, entretanto, não é isso, pois não são números sequenciais. Outra das presenças poéticas que Bruna traz como elemento, como tecido de poesia. Sem deixar de observar que os numerais pertencem a outra “natureza” diferente da das palavras.) Bem, este poema, um dos mais belos do livro, tenta deixar as experiências detalhadas em todo o seu imediatismo sensível, além de uma voz em estado de procura, um certo espírito de espera, que traz confrontos entre uma ocasião solene e uma observação mundana:
Teve um dia que parecia muito com esses dias que vão chover
eu entrei numa casa e disse se ventar agora eu vou morar aqui
floriu; agora é perto dela que eu gosto de passear
não é por nada é que tem uma esquina
com quatro estabelecimentos: um armazém
um posto de gasolina um sobrado e um prédio
feio porque fino e também azulejado que ajuda
a empurrar de pêndulo em pêndulo uma corrente
de vento enlutado, logo, mais vivo; aqui o silêncio não é continência
é uma variedade particular que faz parecer que as coisas estão perplexas
e estão no tempo de alguns segundos intervalados tudo está felizmente parado
exceto os cachorros as crianças e as folhas todo o resto usa algum tipo de coleira
a idade é uma delas; eu passeio nessas ruas só porque as folhas andam atrás de mim
enquanto eu caminho (uma delas ficou presa num pedaço de pau, outra num poste)
e sempre que algo assim que parece não existir mas existe e se revela eu digo olá.
O “Ladainha” de Bruna Beber, como alguns críticos já disseram, de fato mostra uma maturidade da poeta. É um livro de peso, um divisor de águas de sua obra, pois ao mesmo tempo em que traz o humor, a leveza, a atitude brincalhona da poeta, que insere o viver cotidiano na manta da sua poesia, também busca as próprias motivações do se fazer poesia, o não-lugar desta poesia que não tem mais como ocupar o lugar das alturas e da sacralidade, ou mesmo da redenção ao desperdício da palavra num mundo movido por máquinas e pelo capitalismo selvagem.
O ritmo e a forma aparecem em muitos poemas como pontos de observação, um olhar para “si mesma” neste lugar de quem maneja a arte como proposta de entendimento dos sentimentos que a arte não consegue condensar e nem esgotar. Tem poemas influenciados pelo concretismo, como o poema 3I., tem poemas envolvidos em sonoridades palpáveis, como se vê em versos como estes: “Não é meia-noite/andei a vida inteira/ melhor é caminhar/ E esse barulho/ é chuva ou salva de palmas?”.
Em certos poemas, a presença da indagação se a natureza é o que o homem estabelece em formas de paisagens ou se é o próprio encontro do homem com a sua morada no organismo cru que se ergue tal qual ele. É como acharmos mesmo um fio que vai ligando os estados, os procedimentos, os não-lugares, a existência mútua secreta e a propositiva de que o pensamento é um órgão vivo que por vezes se cola ao sentimento humano, o que seria um quase paradoxo, de certa forma, da serenidade de Heidegger:
29.
Laura me leva para a água
Não é só assim que somos felizes
Mas aqui somos mais
É bom passar minúsculos
Olhando para uma coisa só
Como se nunca tivéssemos inventado
Uma imagem sequer do futuro
E então ficamos cerca de um minúsculo
Olhando para o mar e fingindo
Que o movimento das ondas
Era parecido com estender lençóis
E quem as estendia éramos nós
Você sabe, a água não para de ser água
E nós não parávamos de tentar
Arrumar o mar, que não nos incomoda
Ele é um peixe amando outro peixe
Laura gosta de arrumar a cama
Todos os dias, eu desligo o ventilador
Porque a cama é um tipo de mochila
De encosta, de bandeja, de sola de pé
Para os morcegos; prisma ao que gosta
de dormir, balcão ao que gosta de acordar
Não sei explicar mas é como chegar na água
E saber nadar, muito mais ainda assim e por tudo
É sobre conseguir chegar naquilo que eu sou
E cada vez mais perto daquilo que sou com alegria
É uma camisa de força do avesso
Muito boa para mergulho
De certa forma, os poemas de Bruna são como anzóis fisgando os pedaços de poesia que as não-coisas guardariam. Eu vejo um pensamento sobre a Poesia hoje, de sua matéria ao seu lugar, passando pelo seu modo de ser, traduzindo as coisas, os sentimentos, os sonhos. E há também, no livro, uma geografia da natureza (visível e invisível) de nossas tradições e paisagens. Sem dúvida é possível cada leitor verificar ali as relações com outros poetas, com alguns sinais de certas tradições. É um livro poderoso e significativo. Embora eu comecei tentando, não poderia terminar de dizer o que esse livro é, mas talvez a própria poeta possa ter deixado nele o seu sentido:
Estou satisfeita,
mas não devo esperar
nada, é como criar
uma sereia.
Ladainha / Bruna Beber: Record 2017. 93 páginas.
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Milena Britto é doutora em Literatura Brasileira, Professora e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia. Atualmente coordena junto com a professora Nancy Vieira o projeto de pesquisa LITERATURA, POLÍTICA CULTURAL E MERCADO EDITORIAL: QUAIS LITERATURAS (RE)CONHECEMOS?, desenvolvido no Instituto de Letras da Ufba.