Uma outra cena literária: Flip 2017
Milena Britto[1]
Na imprescindível e marcante mesa “Arqueologia de um autor”, uma frase de Edimilson de Almeida Pereira não passou desapercebida, algo mais ou menos assim “Não se pode ler Lima Barreto com as mesmas ferramentas, diante do mesmo cânone. É preciso lê-lo a partir de um cânone extraoficial, um cânone diaspórico”. Na sua apresentação, Edimilson fez uma reverência cuidadosa e responsável a Lima Barreto, trazendo sua obra para uma discussão literária complexa que não deixa de ser política, porque discutir invisibilidade por questões raciais, sociais e de gênero é, obviamente, uma posição política. Entretanto, a política mais potente que a Flip nos trouxe foi a própria literatura.
Bem, penso que a abertura da Flip, com o Lima Barreto “vivido” pelo ator baiano Lázaro Ramos, a partir da impactante biografia de Lilia Schwarcz, já antecipava que aquela Flip não seria uma festa literária qualquer, como de fato não foi. E não apenas por trazer mais mulheres do que homens ou por ter cerca de um terço de autores negros. Foi sobretudo por uma engenhosa, provocativa e arrojada curadoria que levou profundamente a sério os sinais que o momento contemporâneo estava enviando a partir de várias células, desde pesquisadoras negras militantes até as estéticas que se contrapunham a uma ideia corrente e minada de literatura espetacular, passando por um surgimento vivo de formas de produção de livros que alinham qualidade à diversidade, multiplicidade de formas, e uma sensível percepção de contra-tempos em países habitualmente fora de rota, como Ruanda, Angola, Chile, Islândia, Jamaica.
Volto à abertura da Flip. Com a Igreja da Matriz e o auditório lotados, centenas de pessoas comovidas e extasiadas derramavam lágrimas ouvindo Lázaro Ramos usar a sua voz para trazer, finalmente, a voz de Lima Barreto. Digo finalmente porque Lima Barreto nunca teve o que merece mesmo tendo entrado para o cânone brasileiro, a despeito das inciativas louváveis e quase heróicas que muitos pesquisadores tiveram de tentar vencer a história torta de Lima, a exemplo de Cuti e de Beatriz Resende. Esta última esteve presente na Flip colaborando também com a disseminação das particularidades da obra de Lima Barreto.
O autor de “O triste fim de Policarpo Quaresma” merecia uma homenagem desse porte, capaz de colocá-lo no centro da discussão. Não poderia haver melhor nome para ser mote da Flip, precisamente neste instante em que o Brasil passa por um terrível momento político. Mas, diga-se, o nome de Lima Barreto, como toda a proposta desta Flip 2017, é o reflexo de algo maior que a curadora pôde perceber.
Os movimentos indisciplinados de leitores, estudiosos, professores, militantes, tradutores, já absorviam e propagavam a genialidade desse autor por ser ele fundamental na compreensão do Brasil, em seus aspectos sociais, raciais e políticos, mas, sobretudo, em sua malha literária que absorve todas as tensões.
Todos os Brasis até este instante, o Brasil da época do Lima, o Brasil que o resgata depois de sua morte, o Brasil que o vinha lendo meio enviesado em relação ao cânone brasileiro, nunca o observaram com a complexidade necessária, pois, para isso, seria preciso encarar de frente a história racista que o discurso oficial escamoteia e que a arte é capaz de revelar. Edimilson Pereira, poeta e ensaísta, em sua fala, ilumina muito bem o problema de se ler Lima Barreto sem as ferramentas adequadas:
“(…) Neste sentido, imagino a obra de Lima Barreto numa perspectiva ‘outra’ que vai, de certo modo, encaminhar para esta lógica de outro cânone afro-brasileiro. É um corpo estranho na literatura brasileira. (…) a sátira que ele faz não é a sátira de uma classe média carioca do século XIX. É a sátira de um negro. O texto, a lírica que Lima Barreto introduz (…) não é uma lírica eurocentrica. É a lírica de um sujeito que carrega consigo um histórico no qual a exclusão e a possibilidade de acusação e a recusa são fatores constantes.”
Assim, ouso afirmar que os Brasis, todos estes até agora, não consideravam os autores negros como parte significativa e fundamental de sua história literária; não consideravam as mulheres como sujeitos que fazem propostas radicais no pensamento, na poesia, na ficção; não consideravam as produções fora do lugar de sempre –europeus de língua inglesa, norteamericanos brancos–; não consideravam a potência do pensamento que escapa à universidade e às feiras, bienais e festivais, como o pensamento indígena e o pensamento quilombola. Sequer, estes Brasis, podiam aceitar que eruditos e estudiosos pudessem dividir o lugar de saber com pensadores oriundos de estruturas não ocidentais.
Também o cruzamentos entre mercado e comportamento cultural, hoje, é um ponto crítico. A relação da cultura com o mercado, sobretudo em se falando de literatura e mercado editorial, é uma relação injusta, pois não é que o mercado trate de absorver as dinâmicas culturais em suas complexidades, mas, ao contrário, trata-se de um gerenciamento de grandes editoras, muitas vezes fabricando sucessos, impondo-se aos grandes prêmios para que os grandes prêmios, posteriormente, correspondam aos seus lançamentos e “descobertas” e, equivocadamente, passem a refletir uma certa literatura que supostamente é a “boa literatura”. Isso me faz lembrar do que fala o Paul Beatty, ganhador do Man Booker Prize, em outra mesa chave nas discussões literárias desta Festa. Paul Beatty diz que mesmo que as editoras independentes nos Estados Unidos sejam positivamente atuantes e fundamentais, são ainda as grandes editoras que acabam detendo os principais prêmios.
Bem, no Brasil, apesar de ter sido geralmente assim, nos últimos dois anos o mercado editorial vem passando por mudanças, ainda que discretas em termos comparativos com as grandes editoras, mas já provocadoras de demandas. Esta Flip trouxe outra engenhosa e pertinente proposta de não distinguir as editoras por sua força, prestígio e tamanho. A novidade são as pequenas editoras fazendo um aporte na programação. Nunca aconteceu antes em uma Flip das grandes editoras não dominarem a programação principal. Editoras grandes, como a própria Cia das Letras, este ano, não foram maioria nas mesas principais, mesas que, note-se, mesmo que trouxessem autores de pequenas editoras, eram muitíssimo concorridas, abalando o discurso de que as pequenas editoras não possuem fôlego de divulgação, projeção de seus autores, propagação de seus catálogos. Com as redes sociais, as editoras ditas independentes, ou pequenas editoras, investem em aproximações mais orgânicas com mediadores, multiplicadores e formadores de opinião. Professores universitários dos cursos de Letras, como eu própria, potenciais multiplicadores, são exemplos de que há como se contornar a ausência de uma crítica presente e atuante, e há também como escapar aos releases e catálogos, às listas de mais vendidos dos grandes veículos midiáticos, às “vitrines dos mais vendidos”. Creio que muitos dos autores presentes na Flip, a exemplo de Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira, Conceição Evaristo, Adelaide Ivánova, Prisca Agustoni, Josely Vianna Baptista, etc, que muitas pessoas do eixo Sul-Sudeste, ao lado de nós na audiência, diziam não conhecer, são nomes com os quais já lidamos, conhecemos, acompanhamos, estudamos, num circuito que, até esta Flip, não era considerado como parte da discussão mais ampla.
Penso ainda no que disse o Marlon James, escritor jamaicano, também ele ganhador do Man Booker Prize, em mesa com Paul Beatty: “o problema maior com o mercado editorial é que subestimam os leitores. E a coisa maravilhosa de editoras independentes é que elas não podem arriscar fazer isto. Elas estão obrigadas a pensar ‘poderíamos construir um público de leitores para este autor, e estamos dispostos a trabalhar por isso’.” Cada ponto desta Flip tem um sentido maior do que todo mundo estava habituado a ver, a ter, a se apoiar.
A curadora acertou, indiscutivelmente, na montagem das mesas e na proposta que, ao meu ver, é muito mais do que uma proposta para “vender” o maior e mais importante evento literário do país. Ela acertou muito mais por propor uma chave de discussão revolucionária – não por “revelar” a diversidade do país, afinal, se ali estavam quem estava, é porque essas vozes já são parte da malha literária do Brasil (e do mundo) que, obviamente, é diverso– mas uma discussão que de certa forma é questionadora da imagem de literatura brasileira que as editoras maiores e a mídia vinham propondo e, mais ainda, questionadora do lado visível e propagado do país, erro repetido tal qual o erro do Brasil de Lima Barreto.
A maior chave dessa Flip é que o próprio evento passa a “reconhecer” o que vinha ignorando. Neste momento em que as democracias ocidentais passam por abalos sísmicos, toda a arte “estabelecida” precisa ser vista fora de seu lugar de segurança, ou a partir dos muitos outros lugares em que podem “voltar a propor”.
Volto a Lima mais uma vez. Como não creio em coincidências, melhor não ignorá-las. Em algum momento da minha formação, lá nos meados dos anos 90, fui apresentada por minha orientadora, uma estudiosa da crítica, ao crítico baiano Eugenio Gomes, muito conhecido em sua época e autor do livro “Aspectos do romance brasileiro”, de 1958. Gomes revisitava as produções do século XIX e início do XX, partindo de uma ideia conservadora e canônica. Entre muitos ensaios, há um em que ele verifica o lugar de Lima Barreto e não é difícil perceber que ele não valoriza a obra de Lima e sequer compreende a mesma em relação às qualidades literárias peculiares, associadas ao tensionamento provocado por sua cor. Diz o crítico:
[…] Lima Barreto teve como afã absorvente a crítica social. Por isso mesmo, era levado a praticar a literatura em função do jornalismo e, neste, o panfleto é que melhor se ajustava às suas disposições. Seus escritos, em geral, contêm os resquícios de suas amarguras, de suas decepções e de suas revoltas, quase sempre de maneira ostensiva, o que concorreu para tumultuar sua obra de ficção, infiltrando-lhe elementos estranhos e prejudiciais à realidade do romance. In: Aspectos do Romance Brasileiro, p218.
Bem, Eugenio Gomes estava tratando de reler Lima, mas estava fechado em suas ideias preconcebidas e elitistas, o que o faz perder a potência, a genialidade de um autor como Lima Barreto, que teve não apenas que vencer as barreiras raciais e sociais, mas teve de enfrentar-se a si mesmo na busca por uma autonomia estética.
Joselia Aguiar, a curadora, é coincidentemente baiana como Eugenio Gomes, mas o que os fazem aparecer aqui juntos não são suas semelhanças de pensamento sobre o literário. No caso de Eugenio Gomes, ele queria entender e ressaltar as aproximações do cânone ocidental com o cânone nacional. No caso da curadora desta Flip, esta teve a vontade de poder entender, junto com todas as pontas do campo literário, os lugares que “fixam” a literatura do Brasil hoje. Entender quais são os “lugares literários” que dialogam com o Brasil contemporâneo; como a literatura se comporta hoje com as demandas todas que enfrentamos: as demandas do feminismo, as demandas do ativismo, as demandas do movimento negro, do movimento indígena; as demandas de uma arte que não obedece fronteiras de gênero literário, que ocupa lugares estranhos, que geram “frutos estranhos”.
Não é simplesmente a “Flip da diversidade” no sentido que a imprensa vem insistindo. A primeira grande sacada de Joselia Aguiar foi propor formas novas de entrar no jogo. Entendeu ela que uma certa “periferia” do pensamento e da produção literária estava fortemente vinculada a transformações profundas que estão acontecendo e que irão acontecer ainda mais fortemente. E, ao invés de enfrentar pelo confronto raso ou de se aliar a uma mesquinha e perigosa resposta a demandas, ela trouxe para pensar junto as fricções e contradições: o mercado, o meio intelectual, o campo artístico-literário, os agentes de produção, a tradução, a recepção, a crítica.
Muitas mesas exploraram ao máximo as literaturas menos circulares, as literaturas fora de lugar, diluidoras de fronteiras. A rica mesa que trouxe Carlos Nader e Diamela Eltit, assim como outras, se propôs a discutir, entre outros temas, justamente as fronteiras diluídas da arte que se faz hoje. Com esses dois nomes potentes e peculiares, a linguagem complexa da arte, nos dias de hoje, foi debatida a partir dos seus lugares de produção. Nader, que tem um dos trabalhos mais impactantes em audiovisual hoje, afirmou que é importante deixar a “complexidade” como força motora. Ele diz que o que está em jogo e que temos de enfrentar é a tentativa constante de se extirpar da cena a complexidade da arte. Só esta pequena amostra de sua fala nos dá a dimensão deste debate em termos estéticos. Diamela Eltit, escritora chilena conhecida e estudada em vários países e que nunca havia sido traduzida para o português, é uma das principais escritoras latinoamericanas. Há 12 anos eu conheci o trabalho desta escritora e nunca mais o conceito de literatura foi o mesmo para mim. Diamela, na Flip, em par com Nader, discutiu o tema da “escrita difícil”, conceitual. Ela afirmou ser muito questionada por fazer uma “literatura difícil”, mas que simplesmente escreve reagindo à norma da escrita, uma norma imposta por estruturas difíceis de se enfrentar porque fruto de uma tradição conservadora e estabelecida. Ela discutiu que essa normatização é que acaba afastando o leitor das várias formas de expressão artística, pois faz parecer que a literatura “limpa”, fácil, decodificada mais rapidamente, é a literatura boa. Só agora, note-se, ao mesmo tempo em que se pensa as vozes que por violentos fatores foram excluídos da cena, é que o Brasil vai ser introduzido à obra desta mulher. Joselia Aguiar, portanto, não está fazendo reparação ou atendendo a um clamor “dos invisibilizados” isolado de uma pergunta maior. Ela traz uma cena altamente rebuscada, literariamente falando, para chamar junto os escritores que tradicionalmente estão fora dos grandes circuitos: autoras mulheres fora de lugar, escritoras negras, escritores negros, escritores indígenas, escritores desconhecidos, escritores “estranhos”.
Quando Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, na última mesa, ao mesmo tempo que constroem um percurso de leitura e referências, mapeiam as escritas de mulheres negras, elas deixam para o espectador uma discussão tão emaranhada quanto rica, afinal, essa história de exclusão não atinge apenas o escritor, mas retira a possibilidade de o leitor, qualquer leitor, se acercar às visões de mundo, aos desejos, às histórias multiculturais, multiraciais que conformam a literatura do país. Retirar a escritora negra, o escritor negro de cena, é reforçar o racismo e é também praticar uma grande censura para a recepção, para nós, leitores e leitoras. Conceição Evaristo, ao explicar o seu processo criativo e a sua busca para reconstruir a oralidade por ela almejada em sua escrita, nos dá uma profunda aula sobre procedimentos, estéticas e escolhas estilísticas que não são menos complexas do que as que habitualmente se discutem quando se trata de uma autora branca.
Outro ponto importante e genial da Flip foi trazer obras artísticas entre as discussões para que o leitor pudesse ir experimentando as estéticas que estão vivas na cena literária e que vinham sendo invisibilizadas, seja por preconceito seja por desconhecimento. A série “Fruto estranho” veio como uma preciosa fruta que não deixava de nos dizer que a Flip era puramente sobre literatura e tudo o que a ela diz respeito. Com estas amostras literárias, a curadora quebra a hierarquia entre pensamento e obra de arte, pois estes fragmentos de obras “falavam” na Igreja da Matriz tanto quanto os convidados. Nada de discurso social, de visão antropológica que muitos tentam dizer ser o foco da Flip, na tentativa, talvez, que alguns tenham de reduzi-la ou de minimizar o seu valor, e, principalmente, o seu impacto. Performance poética, video-poema, música, projeção faziam de cada “fruto estranho” uma experiência única. Poetas valiosos como Adelaide Ivánova, Ricardo Aleixo, Josely Vianna Baptista, Grace Passô, Prisca Agustoni e André Vallias foram vistos com total espanto por uma plateia que não se controlou depois. Os aplausos e a surpresa estavam juntos e soltos. Expôr à plateia o que se faz fora das cenas já marcadas, a maioria destas oriundas do eixo Sul-Sudeste, foi realmente mostrar que uma proposta de curadoria de um evento literário precisa, antes de tudo, estar comprometida com a literatura e saber onde e por quê buscá-la.
A Festa Literária de Paraty foi uma grande aula sobre literatura sem pretender ser. Todas as mesas, das que traziam a literatura infantil às que tratavam da tradução, como a da Bíblia diretamente do grego e das traduções novas de Safo também diretamente do grego, discutindo os temas certos e pertinentes, foram ricas formas de discutir e informar todos os lados do que chamamos de campo literário. As escolhas foram as mais acertadas possíveis. Absolutamente tudo o que ali estava dialogava com a proposta de se discutir a literatura fora da obviedade, fora das caixinhas. A escravidão na América latina, a Revolta dos Malês e a política atual, com João José Reis, os limites da ficção e da biografia, com Ana Miranda, a macumba revolucionária de Luiz Antonio Simas sendo trazida pra debate intelectual, os amores entre mulheres de várias gerações trazidas na literatura de Natalia Borges Polesso, a subjetividade de Djaimilia Pereira de Almeida que usa o seu cabelo negro em uma obra esteticamente provocadora, o ritmo fulminante dos contos de Carol Rodrigues, o Rapper e ativista angolano Luaty Beirão ao lado da freira e escritora Maria Valéria Rezende, a “Escrevivência” de Conceição Evaristo, assim como todas as mesas e a programação paralela, fizeram desta Festa Literária de Paraty um grande acontecimento. Um acontecimento histórico mesmo, capaz de devolver à cena literária a paixão pelo debate, a curiosidade e a disposição para pensar a literatura brasileira no século XXI com as contradições e as ferramentas do século XXI. Talvez uma intensa proposta como esta tenha sido lá nos anos 20 do século XX, com a Semana de Arte Moderna de 1922. Mas, ressalto, é uma comparação ligeira em termos de impactos imediatos. Não vamos cair na besteira de tentar encaixar ideias e procedimentos do século XX em nosso século XXI.
Voltei à minha universidade depois da Flip e pude ver que a Flip 2017[2] tinha mesmo alcançado a profundidade e a repercursão esperadas. Vários dos meus e minhas colegas disseram que os seus programas de disciplinas de letras seriam modificados, que as mulheres e os autores fora de circuito passariam a fazer parte dos programas e propostas de cursos, porque, agora, com o que a Flip fez visível para muitos mais de nós, havia um debate verdadeiro acontecendo. Era preciso revelá-lo. É preciso, agora, acompanhá-lo.
Scholastique Mukasonga e Noemi Jaffe, na mesa “Em nome da mãe”, emocionaram a plateia ao dizerem que escrevem a partir das tragédias que envolvem as suas respectivas famílias. Noemi recupera junto com a sua mãe, sobrevivente de Auschwitz, uma memória dolorosa e ao mesmo tempo curativa, com “O que os cegos estão sonhando”. Ela diz que escreve para não deixar esquecer que há sobreviventes do nazismo. Scholastique diz que escreve para enterrar sua mãe, seus mortos. Ela é sobrevivente do genocídio de Ruanda, no qual perdeu a sua mãe e suas irmãs.
Conceição Evaristo em sua conversa com Ana Maria Gonçalves diz “Estarmos aqui não é uma concessão, esse lugar é nosso por direito”.
Ricardo Aleixo em um verso de sua performance, cantado por centenas de vozes surpresas e fascinadas na tenda da Flip, diz “Eu jogo palavra no vento e fico vendo ela voar”.
Adelaide Ivánova, no último verso de seu visceral poema sobre feminicídio lido na Flip, diz: “A quem estaria o meu silêncio a serviço?”.
Esses fragmentos de falas e de poemas eu escolho para deixar suspensos no final desta breve reflexão. A Flip 2017 é um dispositivo histórico para a literatura e para o Brasil de hoje. Mesmo que jamais volte a se ter uma Festa Literária como a deste ano, Joselia Aguiar espalhou no ar alguma coisa que nos cabe perseguir.
MILENA BRITTO
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[1] Milena Britto é doutora em Literatura Brasileira, Professora e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia. Atualmente coordena junto com a professora Nancy Vieira o projeto de pesquisa LITERATURA, POLÍTICA CULTURAL E MERCADO EDITORIAL: QUAIS LITERATURAS (RE)CONHECEMOS?, desenvolvido no Instituto de Letras da Ufba.
[2] Acompanhei a Flip 2017 como pesquisadora-observadora. Gravei algumas reações da plateia, conversas de leitores, de escritores. Observei muitos pontos que espero, posteriormente, poder analisar com mais profundidade, mas devo dizer que, tristemente, também vi a dificuldade de alguns escritores brancos lidarem com autores negros.