As Ruínas de Hoffmann e outros poemas inéditos de Fabiano Calixto

 

Fábula para uma noite de tempestade

Que calma penetra em nós
que calma quando o céu anoitece.

Rainer Maria Rilke

não consegue colocar a chave na ignição
quando consegue, o carro não liga

perseguição na floresta e, fatal, o baque
de pedra, folhas secas e lágrimas, a queda

os racistas, fascistas, machistas, idiotas
sempre morrem violentamente

antes, a linha telefônica era cortada
hoje, não há sinal de celular

para nosso desespero, a hora de foder
pode ser também a hora se foder

o Matusalém que tudo sabe
e sua chuva de perdigotos selvagens

um tiro no olho, machado no crânio,
incineração, bala de prata no coração,

um cabo de vassoura no cu, soco,
desmembramento, facadas,

tripas nas mão, decapitação
da morte, sempre voltam

e só ela, sempre ela
apenas ela sobrevive

 

*

 

As Ruínas de Hoffmann
(monólogo distópico)

 

ando por essas ruas todas as noites
não vejo mais o que queria ver
a tragédia nuclear adiantou-se muito
ninguém levava fé
(Alan Moore sabia
o Nuclear Assault sabia
George Taylor sabia
Brian Heriot sabia
eu desconfiava)
Sara sumiu
faz 3 meses – pouco mais –
foi tentar a sorte nas Ruínas de Hoffmann
no litoral, praia de carne podre
onde os ventos cheiram
noite e dia
a carniça, silício e ferrugem
não muito diferente daqui, deste lugar
que chamam de Trevas de Abbadon
(o antigo centro de São Paulo),
que cheira a cadáver, mijo, merda, plástico queimado
e não há mais
quem enterre os mortos
não há mais memória
a energia elétrica acabou faz pouco mais de 10 anos
não restou nada da cidade
a não ser o horror

os muros gritam
como dementes desesperados
cheios de cocaína
perdidos, de manhã, num parque de diversões
abandonado

Mariana Avelar não volte para cá! Suma, querida! Nós te amamos!

Quem foi que esqueceu de avisar a Deus?

E agora Jesus? Suplício de silício…

Nós achamos o Carlinhos Ricardo. Morto. A Leila. Morta.

Chegamos, enfim, ao progresso. Ele nos matou. Maldito seja o progresso!

Existir era tão sexy. Quem destruiu nosso orgasmo?

quando cantávamos
todos
aquele velho hino de desocupados
que dizia

Looking at the future
There’s not much to see
Your homeland lies under
Radioctive debris

nenhum de nós imaginava
que o desastre de Fukushima
daria merda tão grande
tudo começou com a água dos oceanos
apodrecendo toda a vida marinha
feridas, destroços de carne, pele, ossos, escamas
os ursos polares morrendo
os salmões cancerosos
a desgraça foi se alastrando
país a país, cidade a cidade
iodo-131
césio-137
estrôncio-90

ninguém cria que os agentes patogênicos
ressuscitados pelo degelo do Ártico
fariam tal inimaginável estrago

             sarcocystis pinnipedi
toxoplasma gondii

os parasitas
foram devorando a vida nos oceanos
as focas cinzas, as baleias brancas
leões marinhos, morsas,
ursos polares e ursos pardos
tudo

ó, gélida tundra da Sibéria
acordaste depois de três milhões de anos
com o barulho das brocas do progresso
o despertar lírico da epidemia
de seu permafrost de megavírus

pithovirus sibericum

devorando

devastando

destruindo

desolando

ó, gélida tundra siberiana
chegas ao baile do delírio
bem na hora do adeus
e não há mais gares do infinito
o progresso nos matou

(a vitória esmagadora
do levante acéfalo neonazista
em toda Europa e América
ajudou a coroar o nosso fracasso)

não sobrou

                                       quase

                                                                               nada

                                                                               para

                                       recontar

nossa história

outro dia, enquanto, literalmente
chovia sangue
um mortoiviki[1]
me falava algo sobre
como Jimi Hendrix
tocando guitarra
como os dedos de Jimi Hendrix
tocando guitarra
se pareciam com uma patinação no gelo
uma alucinada patinação no gelo
colocava, pelo caos, o mundo em outra frequência

dizem que nas Ruínas de Hoffmann
pode-se ter algum sossego
desde que a sevícia seja aceita como delícia
o lugar é militarmente protegido
e, para chegar até lá,
só mesmo com muita sorte
pelo caminho, todo o tipo de assassinos,
ladrões, famintos, mutantes, estupradores

o Testa Ruiva, que conheci pouco depois
da falência da energia elétrica no continente
(a escuridão total aportou primeiro na América)
tentou chegar lá
contam que foi estuprado e, logo depois,
devorado pelos famintos
do Estreito do Inferno

o último poeta que se tem notícia
Zagrebe
escreveu sobre as Ruínas de Hoffmann
antes de ser assassinado
pelos Sobrinhos do Silício
milícia geek que fabrica armas
com todo tipo de refugo eletrônico
(baterias velhas, leds, switches, fios de cobre,
cds, dvds, microchips, células fotovoltaicas, fontes etc.)
a carne de Zagrebe rendeu um ensopado público
o poema, um dos poucos que sobraram
da vasta biblioteca universal:

houve um tempo muito longe
onde nos perdêramos por caminhos de trevas
acreditando em religiosos, adorando o dinheiro,
buscando o poder a todo custo
deixando nas mãos de políticos
o que deveríamos nós fazer
não nos foi possível
acordar desse sono de ácaro
deste câncer no cérebro

faziam piada
apenas faziam piada
aqueles que com seus helicópteros
eram capazes de tudo
e não serviam pra nada

mas faziam piada
só faziam piada

agora, neste fim de tarde
respirando sal de silício
sentados sobre uma pirâmide de ossos
observamos
desolados
a ultravelocidade
a ultratristeza
das ligações
elétricas
do cérebro
de deus

como todos que guardam
uma página de livro
na caixa craniana (onde ficam as
novas bibliotecas e museus)
eu só posso dizê-lo de memória

a obra humana tornou-se apenas um resto
uma enxaqueca, uma dor
uma casca de milho de pipoca
apodrecendo nos dentes de trás

a fome devorou tudo
muita gente comeu livros
com sal e temperos manufaturados
encontrados em mercados abandonados
quase tudo que era papel e madeira virou alimento
para o fogo
para aquecer os poucos que sobraram
na via-crúcis
deste violento inverno nuclear

muitos, em falta de comida, comeram sua biblioteca
muitos, em falta de biblioteca, comeram seus amores
muitos, em falta de amores, comeram seus amigos
muitos, em falta de amigos, comeram seus animais de estimação
a imensa maioria, não tendo nada disso, morreu de fome

há a feira dos ossos
passo lá nas noites de lua clara
troca-se qualquer coisa com o mínimo valor
(principalmente circuitos eletrônicos)
por ossos de todo tipo de animal
– inclusive humanos (crânios têm bastante valor)
uma nanotecnologia biológica

alguns, muito poucos, ainda têm
alegria para cantar
(há quem diga que, no alto da Avenida Godzilla,
antiga Avenida Paulista,
existam pessoas que têm
precaríssimos aparelhos
que tocam vinis
mas ninguém acredita)

os Sãosimeões, uma seita que crê em Simeão
Simeão era um gato mapache
que, dizem, conversava com as pessoas
por telepatia e curava cegueira com lambidas nos olhos
Simeão vivia nos prédios abandonados
que margeiam o Elevado Platão Cavernoso
Dizem que Ele nunca morre
os Sãosimeões fabricam um alimento
chamado Aminoácido Simeônico, feito com
substância mandaloriana (que ninguém sabe
exatamente o que é)
é um alimento muito procurado,
mas escassíssimo
(e é muito difícil convencê-los a vender,
por isso são odiados como leprosos
e assassinados aos montes)
os Sãosimeões são a população
mais numerosa de que se tem notícia
nestes tempos de pestes
o que demonstra que o ser humano
é mesmo um erro crasso

esta noite será minha última caminhada
pelas Trevas de Abbadon
vou atrás de Sara
parto rumo às Ruínas de Hoffmann
vou só, pelo caminho difícil
pelo Monte do Cavalo do Cão
onde ficam alguns mutantes desterrados
também conhecidos por possuírem
três olhos na face e por terem
mais de três metros de altura
se alimentam de tudo que sangra
e cagam uma matéria branca asquerosa
que jamais se desintegra (tornando-se
uma espécie de magma)
vou com essas bombas
que comprei de um casal mortoiviki
são oito, muito potentes
apesar de os mutantes serem uma multidão por lá
foda-se, aqui não fico mais!
morro de morte ao amar-te
e de morte morto amar-te-ei

havia uma paisagem de tripas
e um silêncio ensurdecedor
a Serra da Morte estava quieta
eu podia ouvir meu coração
como uma explosão longínqua
numa galáxia distante

eu vi as Ruínas de Hoffmann
na manhã do quadragésimo sétimo dia
havia perdido o braço esquerdo numa armadilha
(eu matei muitos mutantes,
mas eles eram mais do que eu imaginava)
eu vi as Ruínas de Hoffmann
e ali a areia encardida da praia
fedia ferozmente
havia sentinelas por todo o forte
eu os vi
eles me viram

fui explodido por um míssil atgm
certeiro!
um jorro!
lembro de minhas últimas palavras
ainda com as vísceras nas mãos
terem sido cantadas
com o último gesto do batimento cardíaco
uma última aventura do sonho
You were always on my mind
You were always on my mind
eu vi o dedo de gelo da morte
apodreci sob este sol de câncer
fui devorado por estes vermes estranhos
junto com o rosto severo de Sara
(morro de morte ao amar-te
e de morte morto amar-te-ei)
que também viu o dedo de gelo da morte
pelo mirante dos meus olhos

—————————

[1] Os mortoivikis são uma das muitas raças mutantes que caminham sobre o planeta. Humanos modificados geneticamente em laboratórios finlandeses pouco tempo depois do apagão, eles suportam meses e meses sem água ou comida. Foram projetados para servir como soldados de defesa patrimonial, última cartada dos endinheirados capitalistas para tentar manter as coisas sob seu comando. Só que os mortoivikis se rebelaram e, obviamente, lutaram contra os poderosos, matando-os quase todos. Hoje, os mortoivikis são um grupo imenso de mutantes e, acredita-se, estão espalhados por todos os continentes.

 

*

 

VELOTROL

certa paragem
diluída nas cores
as beiradas roídas
um suspiro febril
pelo quintal de casa
onde você passava
cabelos crespos
pretíssimos
as canelas secas
os pés metidos
num kichute velho
retorno outra vez
ao meu sorriso
de dentes de leite
chapados
sorvete de chiclete

(escrevo lágrima
e os fios d’água
sulcam o rosto
surdamente
enquanto colho
desta noite mineral
os figos maduros
com os quais fiz
a minha carne)

aquele disco ao vivo
me esperando
com seu rock pauleira
e glitter sobre a vitrola
nos domingos
onde tumultuava
os tímpanos

por alguns minutos
feito estrela cadente
a cruzar, fugaz,
esta fotografia
pude (pudera)
entregar àquele
esqueleto plástico
multicolorido
o meu espírito

 

……………………………………………………………

Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 8 de junho de 1973. É poeta. Vive em São Paulo. Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, USP. Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Um mundo só para cada par (Alpharrabio Edições, 2001), Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sangüínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China,2014) e Nominata morfina (Córrego/Corsário-Satã/Pitomba, 2014). Sua educação sentimental foi ministrada pelos Beatles, por Raul Seixas e pelos Ramones. Evita relação com pessoas de temperamento sórdido. Seu próximo livro de poemas, intitulado Fliperama, sairá em 2017.

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