Foto de Alejandro Reyes. No livro "Sueños en tránsito: Crónicas de migración" - Alejandro Reyes, Penguin Random House, 2013

Sobre “La Bestia”, um trem de sonhos e quimeras

[Crônica originalmente publicada em espanhol no livro “Sueños en tránsito: Crónicas de migración” – Penguin Random House. Traduzida para o português pelo autor. Leia esta crônica em espanhol aqui].

Sobre “La Bestia”, um trem de sonhos e quimeras

Crônica da Caravana Passo a Passo Rumo à Paz

Alejandro Reyes

Chamam-lhe la bestia, “a besta”. Inumeráveis toneladas de ferro chiante que avança moroso da fronteira do México com a Guatemala a caminho do norte. Nela, sobre ela, segurando-se ao metal candente dos tetos dos vagões, viajam todos os dias sonhos, esperanças, tragédias, anelos e solidões. É o trem da morte, o trem dos migrantes, e os milhares de quilômetros que ele percorre representam uma das viagens mais perigosas do mundo. Na besta subimos em Tenosique, Tabasco, perto da fronteira com a região da floresta do Petén, na Guatemala: migrantes, ativistas, jornalistas e indivíduos solidários que nos unimos à Caravana Passo a Passo Rumo à Paz, uma iniciativa de várias organizações defensoras dos direitos dos migrantes, para visibilizar a violência que eles e elas sofrem no México e exigir o fim dos abusos.

Nenhuma descrição pode dar conta da voragem de sentimentos que se encontram no momento de subir pelas escadas dos vagões, carregando escassas provisões, e encontrar um espaço onde se acomodar entre tantos outros e outras migrantes em condições similares e diferentes. Tem aqueles que conhecem o caminho, já o percorreram várias vezes, foram deportados em distintos pontos do México ou dos Estados Unidos, foram assaltados, golpeados, sequestrados, extorquidos. Tem aqueles que nunca pisaram no México e só conhecem o trem de ouvido, suas histórias temíveis, seus tantos perigos. Muitos se conhecem, para chegar até aqui eles tiveram de atravessar parte de Honduras e toda a Guatemala, alguns, os mais afortunados, de ônibus, outros, a maioria, caminhando.

Dois jovens, quase adolescentes, fugiram do seu bairro na periferia de San Pedro Sula, ameaçados pelo crime organizado, com a roupa do corpo e sem nenhum dinheiro. Caminharam pelo mato nove dias, se perderam, de alguma forma conseguiram chegar até Tenosique, um deles tem um vistoso curativo na orelha, algum inseto o mordeu, tem uma infecção, e o outro caminha mancando, os pés em carne viva, os tênis destruídos.

Outro conta que ele é o único que escapou do grupo de cinco que, depois de dois dias de caminho, chegou a Tenosique e foi perseguido pela “migra” mexicana. Ele e outro entraram a uma casa, os oficiais de migração não podem entrar nas casas sem um mandado de busca ou autorização dos residentes, seja como for eles entraram, depois de alguma hesitação, e prenderam um deles, o companheiro pulou pela janela, se escondeu numa pastagem, a anciã que mora na casa levou-lhe comida até o perigo passar.

Um jovem está desorientado, mantém-se calado, afastado dos outros, quase não fala com ninguém. É um dos dois que sobreviveram um sequestro, um grupo grande foi atacado pelos Zetas, havia mulheres e crianças, eles, como outros e outras, foram estuprados, eles dois conseguiram fugir, mas do outro ninguém sabe nada, vai saber onde é que ele foi parar. Vemos o jovem ficar atrás na abandonada estação ferroviária. Suba!, vários gritam, mas ele só olha o trem com olhos vazios.

Mais adiante, a uns quilômetros de distância, dois homens saem do mato, pulam no trem uns vagões atrás. Os migrantes, atentos, ficam em alerta: podem ser assaltantes. Não, alguém os conhece, viajou com eles perto da fronteira. Eram cinco, só restaram dois. “Vai saber ha quantos dias eles não comem”, diz o homem que os conhece. “Não têm dinheiro.”

Há uma sensação de expectativa, de alegria, de medo. Estamos a caminho, estamos na besta. As paisagens são impactantes. Selva densa, voraz, de onde surgem, de repente, minúsculos povoados com casas de taboa e telhados de lâmina, camponeses que cumprimentam solidários, anciãs que sorriem nas portas, crianças que gritam e riem. Rios, pequenas lagoas, pastagens, montanhas, verde em toda parte. Atravessamos uma ponte, muitos se levantam, esticam os braços, riem, uma sensação de liberdade, de movimento, a extensão ilimitada dessa natureza exalta os ânimos e alimenta as esperanças: a gente consegue, cê vai ver, desta vez a gente chega, com fé em Deus.

O sol queima, a água escasseia, quase ninguém tem comido, um pequeno grupo levou tortillas. Ninguém se queixa. Tentamos nos proteger do sol de qualquer forma, blusas e panos na cabeça como turbantes. Conforme avançamos, vão se tecendo amizades, solidariedades. É a comunhão de anelos e perigos, desejos e receios. Com essa vertigem de emoções tecem-se laços, compartilham-se histórias, uns se reconhecem nos outros. Estamos juntos e juntas, ninguém sabe por quanto tempo, e é justamente a incerteza, talvez, o que mais nos une. E a solidão.

Mas tem uma diferença. Esta parte da viagem é distinta, todos o sabemos. Os migrantes agradecem sua sorte. “A gente perdeu o trem no domingo, quando a migra nos perseguiu. Mas Deus sabe por que Ele faz as coisas. Não fosse isso, não estaríamos aqui.” A presença dos jornalistas e os ativistas traz proteção, mesmo que não garantias — numa caravana anterior, três homens armados numa caminhonete tentaram sequestrar uma das mulheres, perto de Orizaba.

Em Palenque, uma recepção inesperada: uma equipe de saúde e duas ambulâncias, garrafas de água, pacotes de soro reidratante, sanduíches e frutas. “São fatos, não palavras”, diz o governo de Chiapas. Enquanto as câmeras estiverem presentes. “Hmmm, se vocês não estivessem aqui, eles só estariam lá pra foder com a gente”, comenta irônico um dos migrantes. “Chega de sequestros!”, ele grita a um grupo de policiais, divertido com a liberdade de poder gritar impunemente a aqueles que encarnam o terror.

Seja como for, ninguém se confia. Numa clareira, sob o sol ardente das duas da tarde, o trem para sem aparente razão. Imediatamente o povo fica em alerta: “Por que parou?” Todos tentamos vislumbrar inimigos escondidos entre as árvores, o indício de alguma caminhonete atravessada lá na frente, algum movimento suspeito, prontos para pular em caso de perigo, de uma altura de vários metros, e correr feito doidos para salvar o pescoço. “Eu fui sequestrado em Reynosa na quarta vez que eu tentei cruzar”, conta um hondurenho que vai na sua quinta tentativa. “A gente estava em Nuevas Aguas, chegaram várias caminhonetes e nos apontaram com as armas, nos fizeram subir com pancadas e pontapés. Levaram-nos a uma casa fechada. Bateram na gente. Um a um, nos levaram a um quarto sozinhos, nos pediam números telefônicos. Eu não dei, e cada vez que eu dizia que eu não tinha número, apanhava. Quando consegui fugir, cheguei na casa do migrante em Reynosa e fiquei uma semana com atenção médica. Eles querem números de telefone para extorquir dinheiro da família, lhes dizem que vendam tudo para mandar o dinheiro, e às vezes nos matam mesmo que a família mande o dinheiro. Mas, se você não der o número, lá vem as pancadas… Eu achei que ia morrer, nos levaram ao rio para nos matar, a gente quase não conseguia nem se mexer, de tanto tempo que ficamos sem comer. Mas, graças a Deus, eu tive uma oportunidade mais de vida, e lá vou eu de novo.” Mesmo assim?, pergunto. “Mesmo assim, lá vou eu de novo, tudo pelo bem dos nossos filhos.”

As máfias do crime organizado descobriram que os migrantes são uma mina de ouro, “um negócio muito lucrativo, um signo de dólares”, conta Elvira Arellano, ela própria migrante, que em 2006 desafiou as leis dos Estados Unidos quando quiseram deportá-la; refugiou-se em uma igreja em Chicago e transformou-se em ativista pelos direitos dos migrantes. Um ano depois, ela foi deportada, mas decidiu continuar na luta, agora no seu próprio país. Ela viaja no trem e é uma das coordenadoras da caravana.

No início, o crime — as maras, os Zetas, outros grupos delinquentes ou do tráfico de drogas — assaltavam os migrantes para pegar o dinheiro que eles levam para a viagem e para pagar o coiote, o traficante que os guia através da fronteira dos Estados Unidos. Depois descobriram que era muito mais lucrativo extorquir as famílias. E agora, no contexto da guerra desencadeada pelo presidente Felipe Calderón, os migrantes são sequestrados para servir como escravos do tráfico, sobretudo dos Zetas, em particular no Estado do México e em Veracruz, mas também em outros estados. Eles os sequestram, os treinam e os põem a trabalhar, muitas vezes como sicários. Aqueles que se recusam, morrem. Aqueles que tentam fugir, morrem. Enterram-nos em fossas comuns e ninguém volta a saber deles.

A cumplicidade de membros de todas as instituições do governo e, em particular, do Instituto Nacional de Migração e dos diferentes corpos policiais, é bem conhecida. A impunidade que tem o crime organizado para sequestrar, extorquir, torturar, estuprar, escravizar e matar aos migrantes é a principal razão da violência, que muitas vezes acontece com a conivência e ativa participação das forças policiais e migratórias.

E as famílias? “Você pode imaginar o que isso significa para a família?”, pergunta Mário, um migrante hondurenho que subiu no trem em Palenque e que viaja com um conterrâneo que já morou no Texas e que prometeu lhe ajudar a achar um emprego, se conseguirem chegar. “A gente sai e ninguém sabe o que vai a acontecer. Muitos somem e a família fica anos sem saber o que aconteceu, se chegou e está nos Estados Unidos, se foi sequestrado, se morreu. É terrível viver assim.” E a tua família, o que eles acham?, pergunto a Rigoberto, outro migrante hondurenho. “Eles não gostam, é muito difícil a gente deixar de se ver vários anos, e além disso eles têm muito medo do que possa acontecer, a gente nunca sabe se vai voltar.” Rigoberto já morou quatro anos nos Estados Unidos, foi deportado há um mês. Como foi ver a tua família? “Foi a melhor coisa que já me aconteceu na vida. Eu me senti sonhado. Fiquei com eles um mês, e agora vou de novo pra cima. Se eu conseguir, fico mais quatro anos.”

Quase todos os que viajam no trem são hondurenhos. E todos falam a mesma coisa. Não tem emprego, não tem dinheiro, o crime está horrível, não dá pra viver desse jeito, os filhos merecem uma oportunidade na vida. Depois do golpe de Estado, a situação virou insuportável. O poder econômico concentrado em mãos de uns poucos, a impunidade e a conivência do poder político com o crime organizado tornou o país um inferno. Extorsões, violência, assassinatos.

Dois jovens, irmã e irmão, viajam juntos. Nunca saíram de Honduras, não têm dinheiro, não conhecem ninguém nos Estados Unidos, não sabem aonde eles vão nem por onde nem como eles pretendem cruzar. Vão improvisando, como as coisas acontecerem. São amáveis, sorridentes, solidários com os outros. Oferecem-me uma lata de atum. À noite, vamos juntos, todos temos de nos deitar, pois na escuridão não dá para ver os galhos das árvores, que são perigosos e que passam batendo em nossos rostos e corpos, mesmo deitados. Somos muitos, não cabemos, estamos praticamente uns sobre os outros, tortos em posições impossíveis. Os três tentamos nos proteger da chuva que cai pertinaz com o mesmo pedaço de plástico. Depois, o frio. Alguns não dormem, com medo de cair. Quando a chuva passa, aparece um céu estrelado, belíssimo, atravessado por manchas fugazes da folhagem que confirma nosso lento, porém firme, caminhar rumo a esse norte de esperanças e quimeras.

A manhã é esplêndida e o sol nascente ajuda a desentumecer os corpos torcidos que começam a se espreguiçar. Mais um dia de viagem, de calor, de sede e de fome, de histórias e anedotas, de perigos livrados, de solidão eludida com a intensidade do presente e o fogo da esperança.

Nessa tarde, nos despedimos. E em cada mão dada e em cada abraço, uma incógnita. Que será de você, irmão, irmã? Na corrente irrefreável desse fluxo de sonhos e esperanças a caminho da utopia do norte, homens e mulheres se encontram e desencontram, se solidarizam, se amam, se perdem, vítimas de um sistema triturador e excludente, a própria personificação do desamparo, mas também da resistência, da perseverança, exemplos vivíssimos do potencial humano de continuar lutando por uma vida digna com tudo em contra.

(Alejandro Reyes, em “Sueños en tránsito: Crónicas de migración” – Penguin Random House, 2013. Leia esta crônica em espanhol aqui).

Foto de Alejandro Reyes, do livro “Sueños en tránsito: Crónicas de migración” Penguin Random House, 2013
Foto de Alejandro Reyes, do livro “Sueños en tránsito: Crónicas de migración” Penguin Random House, 2013

 

Escute um documentário sobre a migração no México – uma colaboração de Radio Zapatista para Pacifica Radio/KPFK em Los Angeles, California, por Alejandro Reyes e Eugenia Gutiérrez, com colaboração de Rita Valencia e Miguel Pickard.  Clique aqui para escutar.

 

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