Sem vagas
Ricardo Domeneck
Difícil é acreditar no calendário ou no GPS quando se quer estar fora do tempo, fora de lugar, compartilhando oxigênio com ninguém. No lugar errado e na hora errada estamos todos, depois tentamos consertar a bagunça com um ano bissexto. Torna mais difícil ainda aceitar o relógio e o mapa, então você repete: “Isso aqui é São Paulo, não é Tierra del Fuego, não é Poughkeepsie nem Dubai, muito menos Hogwarts ou Oz.” Aqui está você, conectado, localizável por satélite, googlável, sempre em anexo. Cá estou eu, com endereço registrado, firma reconhecida em cartório, com previdência paga, um membro do clube, um cidadão, um residente, um condômino, um eleitor, um consumidor, um cliente, um alienígena, você pode me localizar mais facilmente do que eu encontro meu umbigo, meu pau, meu cu. Eu me registro, digito o nome, sou um usuário, sim, tenho conta e perfil e página, dou as senhas todas, entro e desapareço. 23° 32′ 52″ S 46° 38′ 09″ O. Só e lotado, nossos corpos são as lotações originais da cidade de São Paulo, caçando um buraco onde me enfiar, se ao menos pudesse cavar este buraco em você.
E cadê o maldito príncipe do conto de fadas, cadê o galã da novela? Está achando que isso aqui é o quê? A Matrix das bananas? A piada por aqui sou eu, apenas seis graus de segregação entre meu corpo e o perfeito senhor dos sonhos, talvez ele esteja logo ali, virando a esquina, ou em 05° 33′ 42” N 00° 12′ 69” O, estará em Viznar, Upsala ou Lhasa, quiçá em 29° 39′ 67” N 91° 07′ 83” L, ou talvez em Curitiba, Oaxaca ou Acra. Ai, esses boleros da adultez. Que bebês felizes éramos! Que caminhas de hospital confortáveis aquelas! Mas cá seguimos não mais em camas e sim em macas de um hospital enorme, pregamos nossas memórias nas paredes, personalizamos nosso quarto de enfermaria, gritamos NÃO HÁ VAGAS aos que nos invejam as samambaias no canto do cubículo. Sonho mesmo é tão-só um beliche e quem o ocupe neste hospital! Um companheiro de soro. Você sussurra, você murmura, você gagueja. Cantarola “Hey Sister Morphine” com a melodia de “Hey Mr. Tamborine Man”. O cachorro agora começa a latir no quintal da casa vizinha. ATENÇÃO CÃO. Você não é bem-vindo aqui. E quem é? Vai, meu filho, engula seu dramin, seu zolpidem, seu midazolam, sua valeriana, sua camomila, durma com os anjos, lá vem a onda. Você foi fraudado nas possibilidades de estar no lugar certo na hora certa. Confira seu relógio, ele parou, você já não tem um pulso lá dos regulares, seu coração se entope aos poucos, sua garganta está inflamada. E é isso o que eles chamam de primavera, essa frente fria, essa chuva meio ácida sobre as flores de plástico no Cemitério da Consolação.
Mas seu cabelo ainda é natural, ainda seu, seu cabelo ainda não abandonou você. Um brinde para seu melhor amigo, o cabelo. E seus pulmões, esse casalzinho incansável. Suas unhas não crescem, não, elas estão – como você – tentando escapar de você. Seus pés já se esqueceram do gosto de um lugar, sempre calçado mesmo em casa, de meias, a sola dos seus pés conhecem de perto há tempos apenas o ralo do banheiro. As férias acabaram, as escolas estão fechadas, você precisa ir em frente! Mas, aonde? Ali. Lá. Acolá. Nós não temos o dia todo. 19 de março de 2010. 3 reais e 75 centavos no bolso, o furado. Lá vamos nós! Para o futuro, que chega! Mas você perdeu a hora, o despertador falhou, você perdeu o ônibus, a curva, você andou um quarteirão a mais, um quarteirão a menos. Não reclame dos parceiros que o mundo jogou no seu colo, você tampouco foi o Y que aquele X havia sonhado. Teve a sorte ou o azar de que seus pais se conheceram. Respeitaram os rituais da espécie e da época. Copularam, ou fizeram amor, ou treparam. Certamente, foderam-se. Eu seguirei mapeando meu desalojamento pelas coordenadas do seu corpo meio bússola. Muitíssimo obrigado. Eu estou aqui, diz o mapa. Agora, diz o relógio. É o fim e o começo, e qualquer lugar é algures onde poderei esquecer o lugar de antes. Não respeito mapas com proporções onde não caibam meu corpo e seus furúnculos. Olhe a minha cara. Olhe como eu me adapto ao seu habitat natural.
Ricardo Domeneck
Ricardo Domeneck nasceu em Bebedouro, São Paulo, em 1977. Lançou os livros Carta aos anfíbios (Bem-Te-Vi, 2005), a cadela sem Logos (Cosac Naify/7Letras, 2007), Sons: Arranjo: Garganta (Cosac Naify/7Letras, 2009), Cigarros na cama (Berinjela, 2011), Ciclo do amante substituível (7Letras, 2012) e o seu mais recente, Medir com as próprias mãos a febre (2015), lançado simultaneamente no Brasil pela Editora 7Letras e em Portugal pela Mariposa Azual. É o editor das revistas Modo de Usar & Co. e Cabaret Wittgenstein. Dirige com Ellison Glenn (Black Cracker) a editora e selo musical Gully Havoc em Berlim. Com o músico e produtor alemão Nelson Bell (Crooked Waves) forma o duo Bell Dome. Trabalha com vídeo e a fronteira textual entre oralidade e escrita, apresentando este trabalho em espaços como o Museo Reina Sofía (Madri), Museu de Arte Moderna (Frankfurt) e Museo Experimental El Eco (Cidade do México). É tradutor de Hans Arp, Friederike Mayröcker, Jack Spicer, Harryette Mullen e Luis Felipe Fabre. Vive e trabalha desde 2002 em Berlim, onde foi publicada em 2013 uma antologia bilíngue de seus poemas, Körper: ein Handbuch / Corpo: um manual, traduzidos para o alemão por Odile Kennel. Na Espanha, foi lançada a tradução completa de seu quinto livro por Aníbal Cristobo, lançado como Ciclo del amante sustituible pela Kriller71 Ediciones (Barcelona) e, na Holanda, uma antologia com seleção de todos os seus livros, Het Verzamelde Lichaam (2015), em tradução para o holandês por Bart Vonck, pela editora Uitgeverij Perdu (Amsterdã). Esse texto faz parte da sua primeira coletânea de contos, intitulada Maremoto, sonho da poça, com lançamento previsto para 2017.
Os livros de Ricardo Domeneck estão disponíveis na livraria Boto-cor-de-rosa.
Sobre Textos fora do mapa: Aqui publicamos poemas, ficções, resenhas e crônicas inéditos de escritores brasileiros e não brasileiros, que muito generosamente escolheram compartilhar aqui. Tudo que você encontrar nesta seção aparece aqui pela primeira vez. Textos fora do mapa, assim como todas as seções deste site, inclui textos em diferentes línguas conhecidos ou em nenhum idioma previamente conhecido.
Foto de Jakob Ganslmeier