Dois poemas inéditos de Alex Simões

Porque não existem vítimas inocentes

Se Pasolini fosse vivo
e morasse em Salvador
na época em que o conheci,
provavelmente
ele me convidaria para sair
não como o poetinha adolescente
mas o menino da borgata
Fazenda Grande do Retiro.
Pasolini saía com meninos da borgata,
como Nilo,
que não saía comigo
porque era meu amigo,
mas igualmente gostava de meninos da borgata.
Pasolini, meu amigo Nilo,
e tantos outros amigos
gostam de meninos de borgata, ragazzi di vitta
como fetiche de mercadoria,
ícones da resistência à cultura pequeno-burguesa
de um mundo capitalista & fascista que os criou,
o que não justifica, absolutamente,
o modo bárbaro com que ambos,
Nilo e Pasolini,
foram assassinados
e menos ainda justificaria a negligência
com que ambas as investigações
foram conduzidas:
um com a cabeça trespassada pelo pneu do próprio carro
o outro enterrado no quintal do assassino com o pé de fora (na mesma fazenda grande em que morava)
e o carro foi abandonado com tudo dentro (carteira e celular, que em 91 era um artigo de luxo).
Duas experiências inesquecíveis:
Pasolini chegou em minha vida quando eu tinha 17 anos;
Nilo, que conheci quando tinha 18, e que gostava muito de Pasolini,
me deixou quando tinha 21 anos.
Durante muitos domingos seguidos liguei para o telefone de Nilo,
como de costume todas as noites de domingo de quando ele era vivo,
e depois me dava conta que ele tinha morrido
assassinado como Pasolini e minha memória traz os dois indistintamente
como vida e obra são indistintas.
Duas vidas que me ensinaram a respeitar a morte e a repugnar a moral.
Porque a vida é perigosa por si só (“Viver é perigoso”, falou uma Rosa),
porque todo discurso moralizante é por si só perigoso
e nos coloca no lugar de juízes (e juízes não são deuses e deuses não existem).
Pergunto: quem foram os assassinos de Nilo e de Pasoliini?
Onde estão? Como conseguem dormir?
Eu sei que um assassino, meu vizinho, escapou pela porta da frente 3 dias
depois de ter sido denunciado pela própria mãe,
Continuou fazendo a alegria de outros que gostavam de meninos de borgata,
mesmo sabendo de sua ficha criminal.
Não tenho ódio, nem piedade, nem dos assassinos,
nem de Pasolini, nem de Nilo.
Porque não há assassinos individuais, todo assassinato é um ato coletivo,
sendo a sociedade no mínimo cúmplice, quando não mandante.
Apenas fui um rapaz de uma borgata,
da mesma borgata-cidade-país-mundo que assassinou Nilo,
de uma borgata parecida com a que gerou o assassino de Pasolini,
e sei que a violência que nos constitui precisa ser lida,
não domesticada ou eliminada,
senão lida como discurso, compreendida a partir de suas condições de produção,
percebida como mais-valia de uma opressão que não vem apenas de cima,
mas que nos atravessa.
E que não há vítima ou algozes neste mundo violento
e que precisamos aprender a não repetir nossos erros
e que os erros não estão nos nossos objetos de desejo.
Os erros apenas são.
E sim, os erros podem ser, senão corrigidos, tema para novas elegias,
como esta,
que apenas existiu para dizer,
aqui,
diante de todos vocês,
não importa o motivo que lhes trouxe:
Pasolini e Nilo ainda vivem em mim.

 

****

ressaca marítima

me custam os olhos da cara
não poder olhar você

como já olhei outrora
ombros, colos partilhados

o meu lugar de silêncio
quando antes grito rouco

fleugma onde era calor
o aceno constrangido

já não espero ademais
que os dias me tragam abril

e as suas ondas revoltas,
embaçadas, anacrônicas.

 

ALEX SIMÕES

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Alex Simões é poeta, escritor, professor, performer e tradutor de poesia. É autor de “Estudos para Lira” (inédito, Menção no Prêmio Copene 2001), “Quarenta e Uns Sonetos Catados” (Domínio Público, 2013) , “(hai)céufies” (Esquizo Editora, 2014) e “Contrassonetos Catados & Via Vândala” (Mondrongo, 2015). Colabora em Revistas Literárias, antologias e em blogs/sites de literatura. Ministra oficinas de poesia, com foco em versificação e ações performáticas em poesia. Recentemente Traduziu o livro “Entonces Daniela”, (Lummen Editora, 2015) e coeditou um número da Revista Organismo. Integra o Mapa da Palavra e é um dos colaboradores da Revista Barril. tem um blog: toobitornottoobit.blospot.com.br

Os livros de Alex Simões estão disponíveis na livraria Boto-cor-de-rosa.

Sobre Textos fora do mapa: Aqui publicamos poemas, ficções, resenhas e crônicas inéditos de escritores brasileiros e não brasileiros, que muito generosamente escolheram compartilhar aqui. Tudo que você encontrar nesta seção aparece aqui pela primeira vez. Textos fora do mapa, assim como todas as seções deste site, inclui textos em diferentes línguas conhecidos ou em nenhum idioma previamente conhecido.

Crédito da foto: Eric Jenkins-Sahlin
Crédito da foto no link: Henrique Filho

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