“Nada fez valer a pena abrir meus olhos” – Ciwan Qado


 
Nada fez valer a pena abrir meus olhos … 
 
 
Nada fez valer a pena abrir meus olhos
tão cedo pela manhã
para sair da cama quente e sossegada.
Durante toda a noite fiquei lendo o Livro Sagrado. Não encontrei
nada sagrado lá, exceto os nomes das árvores e dos animais.
Durante toda a noite caiu chuva do céu e da terra
Sei que o ato de eu sair de casa não fará com que o céu segure a sua benção
e as pessoas também não se cansarão de tecer seus balbucios intermináveis.
Ninguém lá fora pensa sobre a grama estranha e silenciosa que emerge dos muros de barro.
Tudo nesta eterna jornada de repetições permanece estagnado
e ninguém tem olhado de relance o próprio rosto na água de chuva acumulada na impressão do casco de um cordeiro.
Nem no dia festivo do abate os olhos gentis dos animais achatados se moldam na mente de ninguém.
Então por que
devo sair de casa e quebrar os jejuns da minha mente?
Por que devo trocar este meio-sono generoso pelo despertar miserável?
Tudo nesta cama é enchido com as penas do Simurgh,
tudo feito pelas agulhas de tricô de prata de mulheres hábeis,
e aqui me torno o fertilizante dos meus segredos vergonhosos
cinzas e combustível pela minha culpa,
amuleto de olhos azuis pelo meu pânico.
No coração amassado desta cama, sonhei que estava sonhando
ao lado da minha cabeça, o arco e flecha de Boghé Briva se enferrujam,
a rosa selvagem no meu travesseiro mancha o meu rosto.
Meu rosto é um jardim frio e solitário
o arrependimento tem espalhado até a última das suas rosas
sobre o túmulo da minha mente glutona.
 

Ciwan Qado

(Nota dos tradutores para o inglês: Boghé Briva é uma figura lendária na região curda de Síria).

 

Tradução para o português de Sarah Rebecca Kersley da tradução em inglês de Golan Haji e Stephen Watts. Poema escrito em curmânji, língua da região curda da Síria.

 
_____
 

o poema em inglês:

 
Nothing made it worth the bother of opening my eyes…
 
 
Nothing made it worth the bother of opening my eyes
so early in the morning
to take leave of the warm, quiet bed.
All through the night I was reading the Holy Book, I found
nothing sacred there, barring the names of trees and beasts.
All through the night rain had been falling from heaven and earth
I know my leaving the house won’t make the sky hold back its blessing
nor will people become tired of weaving their endless babble.
No one outside thinks of the strange silent grass growing from mud walls.
Everything in this eternal journey of repetitions has remained stagnant,
and no one has glimpsed his own face in the rainwater that’s accumulated in the hoof-print of a lamb.
Nor on the festive day of slaughter do the gentle eyes of the flattened beasts shape themselves in anyone’s mind.
So, why
should I leave the house and break the fasts of my mind?
Why should I exchange this generous half-sleep for miser wakefulness?
Everything in this bed’s filled with the Simurgh’s feathers,
fashioned by the silber knitting needles of skilful women,
and here I become the fertilser of my shameful secrets
ashes and fuel for my guilt
blue-eyed amulet for my panic.
In the crumpled heart of this bed I dreamt I was dreaming
next to my head the bow and arrow of Boghé Briva go to rust,
the wold rose on my pillow stains my face.
My face is a cold solitary garden
regret has scattered every last one of its roses
over the grave of my gluttonous mind.

 

Ciwan Qado
Translated by Golan Haji and Stephen Watts
in MPT Magaazine, no. 02 2017
 

______________________________________________________________________________________________________________
 

Ciwan Qado  (1980) é um poeta curdo. Mora na Alemanha e escreve em curmânji, língua curda falada na região curda da Síria.

Nota de Golan Haji, um dos tradutores deste poema para o inglês:

“Traduzimos os poemas [de Ciwan Qado] do curmânji, o dialeto da parte curda de Síria. Tinha que pensar minuciosamente em cada poema e consultamos o poeta sobre quase cada palavra. Na poesia, o que é mais estranho muitas vezes soa natural, então o Stephen resolveu manter algumas das traduções literais, sempre que foi possível em inglês, como a frase ‘it rains from heaven and earth’ [chove do céu e da terra], o equivalente em curmânji da frase em inglês ‘it rains cats and dogs’ [chove gatos e cachorros frase em inglês que significa chove muito].

Golan Haji é um poeta curdo-sírio que hoje mora na França. Escreve em árabe. Os seus livros publicados em inglês incluem Scale of Injury (Al-Mutawassit, 2016)  e A tree whose name I don’t know (A Midsummer Night’s Press, 2017)

Stephen Watts é um poeta e tradutor britânico. Co-traduziu o livro de Golan Haji A tree whose name I don’t know (A Midsummer Night’s Press, 2017) e os seus próprios livros  de poemas incluem Ancient sunlight (Enitharmon, 2014) e Republic of Dogs/Republic of Birds (Test centre, 2016).

O poema em inglês foi publicado no MPT magazine, no. 2, 2017 – “A Blossom Shroud – Focus on the poets of Shubbak”

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *