“metempsicose 2.0”: um poema inédito de Nilson Galvão

metempsicose 2.0

a criatura sem forma
que a cidade é: falam de
artérias, de espinha
dorsal e de cloaca,
falam de coração e de
alma, o que talvez seja
o vapor de neon daquele
hotel de quinta no meio
da ladeira, o que talvez
seja a água negra de
chuva e borra de asfalto
e fuligem dos carros e
mais o que for acrescentado
e derramado ao longo,
rumo aos bueiros e também
aos céus, o que pode ser o
som de um violoncelo no
décimo terceiro andar,
o que pode ser os acordes
de arrocha ecoando no vale,
o que pode ser a sirene dos
bombeiros, a sirene da
polícia, o que pode ser a
dor dos pobres do mundo
nos casebres, a dor feérica
sua fé intransitiva seu
panteão de santos e heróis
e a cada dia o pão de
cada dia nos dai, não nos
negai o pão de cada dia,
o que pode ser a hecatombe
nossa de cada dia, a
hecatombe em videogame,
o que pode ser o mar, o
que pode ser o rio, o que
pode ser o canal por onde
escoa o saldo das coisas,
pneus, garrafas pet, colchões,
e houve uma vez um carrinho
de bebê, um bebê, um velho,
um doente, um morto, um
barco de palitos de fósforo
a singrar a enchente, o que
pode ser a fúria dos anúncios,
os carros-anúncios, as
roupas-anúncios, o que pode
ser o gato cagando na caixa
de areia, o que pode ser o
cachorro magro sob a
luz glacial de mercúrio, o
que pode ser o boi de mil
partes, o peixe de olhos de
vidro, a galinha implume na
vitrine do açougue, o que
pode ser o presunto na
vala, dez, vinte, trinta buracos
em seu corpo sagrado, o
corpo daqueles que foram
submetidos ao martírio, o
que pode ser a piscina da
cobertura, o que pode ser
champanhe, vinho, cerveja,
pinga, brilho, breize, doce,
pedra, o que pode ser
oxigênio, gás carbônico,
o gás hilariante do coringa,
o coringa que sempre há,
sempre haverá, ele e seu
duplo, o cavaleiro das
trevas e seu duplo, há
sempre uma sombra
projetada contra os flancos
da noite, o que pode ser
o dia de sol sem nuvens, o
dia de nada, praticamente
nada além do verde intenso
do azul intenso e uma bossa
nova como no filme de
david lynch, o que pode
ser o eterno domingo, o
domingo que não terminou,
o que foi congelado naquele
instante em que o mar era,
sim, a única bandeira a
tremular ao sabor da brisa,
daquela brisa em contraponto
com o sol mais quente em
um século e meio, o que
pode ser a festa, o que bem
pode ser a festa, com os
corpos em pane da festa,
o que pode ser o sexo
selvagem, o sexo sem graça,
o sexo tântrico, o sexo
seguro, o sexo à beira do
abismo sobre o batente
da janela sobre a rua lá
embaixo, o que pode ser
a ausência de sexo, o gozo
de tudo que é tipo novesfora
os fluidos e o frêmito do
sexo, o que pode ser a dor
de quem sente, o espasmo
da carne, a inflamação e a
floração da carne em todo
canto, no quarto escuro, no
beco sem saída, no alto do
morro, na cama de hospital,
na mesa do almoço, no
banco da praça, no dia de
sol, o que pode ser o horror,
o horror em meio às gôndolas
do supermercado, aos bancos
de igreja, aos anões de jardim,
o que pode ser a escola repleta,
o pátio na hora do recreio,
as crianças que não foram
à escola, as crianças que
aprendem a pulso, na marra,
na porrada, o que pode ser
a estátua no centro do largo,
as aleias do largo, os mendigos
do largo, o que pode ser a
rua infinita que vai de um
ponto bem recôndito e
miserável até a zona onde
brilham as grifes, o que pode
ser as mulheres e os homens,
trans-mulheres, trans-homens,
hipertrans, overtrans. o que
pode ser o ônibus lotado, o
ônibus vazio, o ônibus de
tudo, pleno de tudo, deslizando
pelos pântanos de quando
chove, de quando chora um
rio de quando chora um rio
desde o céu, o que pode ser um
assalto no ônibus, dois garotos
na fissura no ônibus, um travesti
cansado no ônibus, uma moça
cansada no ônibus, um policial
à paisana cansado no ônibus,
um pipoco no ônibus, outro
pipoco no ônibus, sangue e
pânico no ônibus, um corpo,
dois corpos, três corpos assim,
o que pode ser a cidade inteira
concentrada, abduzida no
ônibus que dispara sem rumo
e sem sinal de trânsito, o que
pode ser a fuga insana o medo
insano pelas ruas e avenidas,
pelas curvas da orla do mar,
pelo contorno do mar até o
fim de linha bem o fim da
linha, pode ser que ele pense
em se render pode ser que
não, pode ser que ele faça do
ônibus a fuga impossível, que
ele se lembre do filme de
alfred hitchcock se é que ele viu,
pode ser que ele apenas
pense num sorvete vermelho,
num sorvete como o da
canção, vermelho, vermelho,
vermelho. pode ser que ele
seja um et e como o et do
filme de steven spielberg
ele voe sobre a cidade, a
silhueta do ônibus contra
a lua cheia, quando sobe o
som e o cinema vem abaixo:
num turbilhão de lágrimas
a caminho de casa.

 

Nilson Galvão

ouça “metempsicose 2.0” lido pelo poeta:

 


Nilson Galvão está em um relacionamento sério com a poesia desde a adolescência. Às vezes a relação dá um tilt, houve cadernos queimados inclusive, mas ela sempre volta. O que sobreviveu às crises está em dois livros lançados pela coleção Cartas Bahianas, da P55: Caixa Preta (2009) e Ocidente (2013), e ainda no Facebook (/nilson.galvao) e no blog nilsonpedro.wordpress.com. Foi menção honrosa no Projeto de Arte e Cultura Banco Capital, em 2009.

Os livros de Nilson Galvão estão disponíveis na livraria Boto-cor-de-rosa.

Sobre Textos fora do mapa: Aqui publicamos poemas, ficções, resenhas e crônicas inéditos de escritores brasileiros e não brasileiros, que muito generosamente escolheram compartilhar aqui. Tudo que você encontrar nesta seção aparece aqui pela primeira vez. Textos fora do mapa, assim como todas as seções deste site, inclui textos em diferentes línguas conhecidos ou em nenhum idioma previamente conhecido.

1 comentário em ““metempsicose 2.0”: um poema inédito de Nilson Galvão”

  1. Nilson, seu poema é um ônibus lotado num trânsito lotado numa metrópole lotada. É abarrotado dessa urbanidade que se vê a cada passo que se dá dentro das metrópoles, que diz não aos sonhos dos seus transeuntes/zumbis, mas ainda assim tem uma carga de lirismo. Lembrei-me muito do livro “Passageiro do fim do dia”, romance de Rubens Figueiredo. Valeu!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *