Texto da escritora Alexandra Lucas Coelho apresentado na 1ª Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô) em 10 de agosto de 2017 na conferência “Deus-dará: um livro que vem da Bahia e vai para a Bahia”, com mediação de Gildeci de Oliveira Leite no teatro SESC SENAC Pelourinho. A autora veio para Salvador a convite da Fundação Pedro Calmon.
O texto foi lido pela própria autora com um auditório cheio e um público atento (incluindo a equipe da boto) e visivelmente emocionado pelo conteúdo.
No final da apresentação a plateia aplaudiu de pé e houve uma sessão de perguntas. Todos saíram da apresentação com muita vontade de ler o romance “Deus dará”, e ansiosos pela sua publicação no Brasil.
Confiram o texto:
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Boa tarde a todos,
Muito obrigada a Gildeci de Oliveira Leite por essa apresentação, por ter lido “Deus-dará” em tempo recorde, e como leu. E obrigada à Fundação Pedro Calmon, à Fundação Casa de Jorge Amado, Sesc Pelourinho, Maré Produções, à Flipelô pelo convite.
É uma grande alegria estar aqui na Bahia. Poucos lugares do mundo fariam tanto sentido para mim, nesse momento.
Um episódio, para começar:
Há uns três anos, em casa de amigos comuns, um baiano disse-me: falta Bahia no seu livro. Esse baiano é o artista vivo que mais admiro, e tinha toda a razão. O tal livro de que ele falava, “Vai, Brasil”, reúne parte das crónicas que publiquei enquanto morava no Rio de Janeiro como correspondente. Vão de Porto Alegre ao Recife, das serras de Minas aos rios da Amazônia. Mas a sempre projectada vinda aqui acabou por não acontecer nesse período, e ficou a faltar Bahia no livro.
Eu pisara uma única vez em Salvador, nos anos 90, ao cobrir uma visita do então presidente português Jorge Sampaio. Breves 24 horas, de que sobravam só uns flashes: cartazes de Antônio Carlos Magalhães por toda a parte; ele falando para uma roda de microfones; as saias brancas, os acarajés, as cocadas no Pelourinho, quando andei por estas ladeiras a gravar sons, acho que à espera de a todo o momento me aparecer um Pedro Bala.
Isto, claro, porque Salvador, para mim, começou por ser a cidade dos “Capitães da Areia”, aí pelos meus 13 anos, em Lisboa, mais ou menos na altura em que comecei a ouvir baianos cantar, sem muita noção de que fossem baianos. De que aquele vagar, aquele sotaque embalando a fala, eram baianos.
Para mim eram brasileiros. Então o meu primeiro Brasil imaginado era Bahia: João Gilberto, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Amado. A cidade dos meninos de rua e de Dona Flor, árabes, coronéis e jagunços, as histórias do cacau. Só depois o Rio de Janeiro entrou na música, Caetano trouxe Chico ao vivo. E o Arena contando Zumbi, que eu nem sabia que era um teatro em São Paulo — o que eu ouvia era o estalido do vinil no mato: negros resistindo a ser escravos, lá no Brasil.
Os batuques do Quilombo de Palmares alternando com baianos foram dos primeiros discos que virei repetidamente, lado A, lado B. Por causa dessa música, dessas palavras, já então — adolescente — eu queria morar no Brasil um dia.
Aconteceu muitos anos depois, em 2010. Era um momento eufórico, Brasil virando sexta economia do mundo, expectativa de Copa e Olimpíada, último ano de Lula na presidência. Propus vir como correspondente, mudei-me para o Rio de Janeiro.
Uma das primeiras crónicas que escrevi chamava-se “Apocalipse nunca”. No impacto da chegada, perante o milagre da vida ali, no meio de tanto descaso, parecia impossível um apocalipse tocar o Rio de Janeiro, cidade de uma natureza big bang, espécie de criação do mundo na nossa frente.
Vejo agora, em retrospectiva, que a ideia de apocalipse já estava lá, nessa crónica de 2010. Como se houvesse uma equação natural entre apocalipse e Rio de Janeiro — ou, por extensão, o Brasil.
No começo, eu via nisso uma imunidade: o Rio — de algum modo, o Brasil — era onde o apocalipse não aconteceria. Depois, fui andando no outro sentido: o Rio — de algum modo o Brasil — era um lugar apocalíptico. Ao fim de dois anos a morar no Rio, algo se tornou iminente. E não apenas porque toda a gente falava de um fim do mundo anunciado pelos antigos Maias do México para 21 de Dezembro de 2012. Era algo mais fundo, vinha da vida ao deus-dará. Do dilúvio sobre as encostas para onde milhões são empurrados; do blindado com uma caveira que age em nome do Estado; do que estava acontecendo nos fundos da Copa e da Olimpíada.
Aí, num fim de tarde dando a volta à Lagoa Rodrigo de Freitas, aqueles sete quilómetros e meio em que morros, floresta e Cristo parecem rodar em torno de nós, pensei num romance passado no Rio de Janeiro ao longo de sete dias, como no Génesis e no Apocalipse. Teria sete protagonistas — dois portugueses e cinco brasileiros —, todos de algum modo em crise, na véspera de uma transformação.
E pensei num mecanismo de cinema, para os articular com a cidade, a oitava protagonista: alternar panorâmicas e zooms, dia sim, dia não, até tudo confluir no sétimo dia. Nos dias de panorâmica, a câmara faria um vai-vem pela cidade, entre os protagonistas, com muitos diálogos. Nos dias de zoom, a câmara ficaria parada em cada um, sete planos fixos. E atrás da câmara, conduzindo tudo, um narrador transatlântico, entre o português de Portugal e o português do Brasil. Ele mesmo fruto de uma transformação que se revelaria no fim.
Assim ia eu, por alturas do segundo dia, quando chegou Junho de 2013 e o Brasil rebentou nas ruas. Isolada numa serra de Minas, para onde tinha ido escrever, comecei por resistir, perdi as primeiras manifestações. Depois percebi que resistia contra o próprio livro. Fui para o Rio, para São Paulo, cobri o que estava a acontecer, no ano seguinte voltei a morar em Portugal, tentei voltar ao livro mas era claro que ele também tinha rebentado. De um pedaço dele irrompeu outro romance, que escrevi e publiquei.
Só quando fui repegar de vez em “Deus-dará”, a meio de 2015, entendi que ele precisara de todo aquele tempo — entradas, saídas e intervalos — não apenas para rebentar, como para me atirar para atrás e para o fundo, para a raiz. Sim, aquele livro passava-se no Rio, e começara por ser um retrato do Rio. Mas o Rio era na verdade o terreiro onde os espíritos baixariam, ou subiriam. O terreiro que, na verdade, este romance seria, muito além do que inicialmente eu pensara. Eu tinha de voltar a 1500, aí começava a corda de mortos que é a história de Portugal com o Brasil: 1500 na Bahia. E isso implicaria recuar mais ainda — para perceber como os portugueses se tinham achado na Bahia em 1500. E para vislumbrar que mundo era esse a que chegaram. Um mundo ameríndio com milhares de anos.
Começou então outra viagem para mim, mais longínqua, de volta à fundação de Portugal, do que moveu os portugueses a lançarem-se ao mar, até avistarem esta costa. Como esse embate entre Velho e Novo Mundo implicou uma catástrofe imensa, levando à morte pelo menos um milhão de pessoas, pondo fim a narrativas, línguas, povos, vários mundos. E no ovo dessa catástrofe havia outra, o tráfico atlântico de quase seis milhões de africanos escravizados, boa parte dos quais para colonizar o Brasil.
Desde a ideia inicial do livro eu imaginara que um dos protagonistas portugueses estaria perdido na sua pesquisa entre povos indígenas, apenas não tive a dimensão de onde isso me levaria. E não será por acaso que o primeiro parágrafo nunca mudou, desde Janeiro de 2013: desde sempre o livro abre com um gigante meio índio, meio negro, que deixou de falar. Ou seja, desde a origem as personagens tinham chaves do que eu ainda não sabia que abririam. O livro tornou-se o que precisava de ser: um “pop up” em que do presente, do apocalipse diário, da violência sobre os invisíveis, os negros, os indígenas, saltam os fantasmas, os fios dessa corda de mortos.
Era preciso puxá-los. Os fios da cidade, que vai nascendo diante do leitor, e os fios da história mais recuada. Então, durante meses, parei de escrever, só estudei. Tricô de séculos, uma coisa levando a outra.
Uma coisa levando a outra, é por causa dos mouros que os portugueses pisam o Brasil. A chegada a esta costa é fruto de guerra, da cruzada económica para ficar com o comércio dos mouros, e também da cruzada religiosa para ficar com as almas. Uma guerra que está na própria origem da nação portuguesa, da conquista ao poder islâmico que dominou a Península Ibérica.
Cabral chegou ao Brasil a caminho da Índia porque os ventos atlânticos exigiam um desvio quase até estas águas, e já se sabia que por aqui haveria terra: valeria a pena, de caminho, espreitar. Mas se Cabral ia a caminho da Índia era para fixar o domínio na rota de especiarias, então controlada pelos mouros.
A terra que se viria a chamar Brasil não era o objectivo principal da viagem. Nem depois de Cabral voltar foi o assunto principal na corte. O objectivo, o assunto, era a Índia, e o que aconteceu na Índia durante essa viagem foi um desastre: ao tentarem instalar-se em Calecute, virar os habitantes locais contra os comerciantes mouros, os portugueses acabaram mais do que expulsos: dezenas morreram chacinados. Um deles, todos o conhecemos na escola: chamava-se Pêro Vaz de Caminha. Assim morreu o autor da Carta com a primeira descrição que conhecemos desta terra — pouco depois de a ter escrito, na Bahia, e de a ter enviado numa nau que voltava a Lisboa para dar notícias do que haviam visto ali.
A Carta chegou a Lisboa, Caminha seguiu com as restantes naus. A Índia foi o fim da sua vida. E a Carta, ou seja o Brasil, a sua imortalidade.
A terra depois chamada Bahia foi, assim, o grande acontecimento dessa viagem à Índia — e em breve se armou nova expedição para conhecer melhor essa costa. Mas na lógica de Lisboa, empenhada em dobrar os mouros, o desastre de Calecute sobrepunha-se: exigia resposta, demonstração de força.
Uma coisa levando a outra, achei-me então a ler o impressionante relato de Thomé Lopes, que acompanhou a expedição punitiva de Vasco da Gama para vingar as mortes de Caminha e os outros. Que nos conta este cronista? Que à ida, Gama não hesitou em queimar um navio de gente viva, famílias mouras vindas de Meca. Depois, ao largo de Calecute, enforcou prisioneiros mouros e escravos negros para que os corpos fossem avistados, em seguida mandou esquartejá-los, deitar os troncos ao mar e enviou cabeças, mãos e pés em botes, para terra.
É um relato vívido e raro. Mas até hoje continua mal conhecido em Portugal fora da universidade. O original perdeu-se, o que sobra é a tradução italiana, e a última vez que alguém tentou revertê-la para português, tanto quanto sei, foi em 1812. Ou seja, não há nenhuma tradução nova há mais de 200 anos. E não é fácil achar a antiga em livrarias. Porque será?
Depois de ler esse relato, fui ao Mosteiro dos Jerónimos olhar os túmulos, Vasco da Gama de um lado, Luiz de Camões do outro. Haveria algo nos “Lusíadas” sobre esse episódio sanguinário? Não, não havia. E porque é que quase 500 anos depois a escola portuguesa, básica e secundária, não contava esse episódio também? Repito: também. Porque não se trata de substituir a versão da valentia pela da carnificina, o bravo pelo bárbaro, mas de saber que ambas coexistiram nos mesmos humanos. Claro que coexistiram, e como.
Porque é que até hoje se perpetua a versão de um Portugal colonizador brando, “menos racista” do que os outros, como se existisse algo como “menos racista”? Porque é que o relato sobre uma chacina do mais glorificado navegador português não circula?
E porque é que até hoje em Portugal, nos manuais escolares, como no discurso político, falta a escala do que estamos a falar quando falamos de escravatura?
O Império português não foi só esclavagista. Foi o primeiro e maior esclavagista do Atlântico. Inaugurou a triangulação Europa-África-América no tráfico de seres humanos. Tirou quase metade dos 12 milhões de escravizados levados de África, enquanto as restantes potências, Inglaterra, Espanha, França e Holanda, todas juntas, são responsáveis pela outra metade. Isto, fora os registos que se perderam ou nunca houve. E fora os escravizados que negreiros portugueses levaram para colónias espanholas.
Mas esta escala está ausente do discurso dominante em Portugal. A escravatura é tratada como uma história antiga, em que todos foram responsáveis, já os africanos escravizavam, o mundo era assim, e etc. Um borrão em que tudo se dilui.
Ao mesmo tempo que o passado de há centenas de anos é usado, e prezado, para enfeitar lapelas, orgulhos, discursos, esse mesmo passado não serve, é anacrónico, ou relativizado, quando se trata de lembrar que milhões de pessoas foram exterminadas e escravizadas; que o império português liderou isso; que Lisboa foi capital esclavagista do Ocidente.
Se Portugal tivesse de facto enfrentado a sua história, se alguma vez tivesse acontecido uma descolonização do pensamento, não seria possível hoje andarmos junto à Torre de Belém, em Lisboa, sem ver um tributo, um memorial, algo que evoque os mortos e escravizados, ameríndios e africanos.
Não apenas o que lhes aconteceu às mãos do império português — e isso é parte da história de violência que é a história de todos os impérios —, como também quem eram esses mortos e escravizados, cosmogonias e narrativas, artes e lutas — toda uma história de resistência.
Quanto mais essa história for invisível, mais os comportamentos racistas se sentirão autorizados hoje, e menos noção haverá de que cidadãos negros são parte de Portugal há séculos.
Não haverá futuro sem mudança nos manuais escolares, nos discursos políticos, no comportamento da polícia, na legislação. Nem sem memoriais ou espaços em que passado e presente se possam conectar. Finalmente, em Portugal, há sinais de que várias vontades, vários movimentos, uns antigos, outros recentes, se estão a conjugar para que isto mude, em concreto.
Apocalipse não quer dizer fim, mas revelação. É possível que os tupinambás de 1500 na Bahia esperassem, de certa forma, por um apocalipse, a revelação de quem os levaria à Terra Sem Mal. Avistaram aquelas velas vindo no horizonte — e os panos em que se enrolavam aqueles estranhos seres, cheios de pêlos, que desembarcaram na praia. Talvez os tenham visto como xamãs que saberiam o caminho para a outra vida. O Novo Mundo começou por abraçar a morte, antes de resistir a ela. Abraçou-a porque estava aberto à transformação, tinha o desejo antropofágico do outro, de ser transformado. E aí começa o abismo: porque o Velho Mundo era aquele que não queria ser transformado pelo outro, mas sim transformá-lo.
Entre crónicas de época e idas aos Jerónimos ou à Torre de Belém, acabei em volta do Padrão dos Descobrimentos com que a ditadura de Salazar quis glorificar o império português. Olhava os perfis dos navegadores na pedra, a imaginar uma versão antropofágica de tudo aquilo. Era disso que o narrador de “Deus-dará” estava à espera. Como, ele só revela no final, um final em aberto, voltado para onde tudo começou.
Mas ainda hoje eu estaria a estudar para este livro se a dado momento não se aplicasse aquele princípio de Jorge Luis Borges segundo o qual um livro acaba não quando está acabado mas quando já não aguentamos mais. Então, não posso dizer que tenha acabado “Deus-dará”, mas pus-lhe um fim fez ontem um ano, data em que o enviei para edição. E depois dele ser publicado vim finalmente ao lugar de onde ele vem e para onde ele vai, a Bahia.
Começando pela costa de Porto Seguro, especificamente a praia que terá sido a do primeiro encontro. Não a primeira a ser pisada por um português, mas a do primeiro encontro entre um português num bote e tupinambás na água. Segundo Pêro Vaz de Caminha, trocaram chapéus, cocares, colares. Um instante de fascínio mútuo, e a utopia termina aí, no momento da utopia. A doença descia já do bote, invisível. Em breve índios morreriam. Décadas depois, seriam escravizados, mortos. Começariam a chegar os negros que os substituíriam no trabalho escravo.
Atravessei essa praia da Bahia na virada de 2016 para 2017, e isso será já outro livro.
Literatura não é política, história, antropologia, astronomia, cinema, música, mas também tudo isso. Tudo aquilo a que nos pudermos agarrar para que o que está morto fique vivo, começando pelas palavras. Por morto entenda-se invisível, escondido, enterrado, gasto e literalmente morto.
Gosto dessa ideia do romance não como um género, mas um transgénero. E um terreiro onde deuses e demónios, mortos e vivos, dancem juntos.
Todo o livro será um apocalipse, para quem escreve e para quem lê, de formas independentes. O perigo não existe sem ambos, quem escreva e quem leia, por poucos que sejam. E continua em 2017, porque a história se repete com outras formas, outra opressão. Todo o livro será uma resistência.
Há seis meses que não venho ao Brasil. Todos aqui sabem como resistir ficou mais agudo a cada dia. Cada vez que falo com amigos brasileiros eles dizem como está foda.
No fim de todo esse papo queria dizer que não é só Bahia que falta naquele tal outro livro. São muitos brasis que sempre faltam na vida. Nada no mundo se parece com a brisa de Caymmi. Ou a alegria dos “Filhos de Gandhi” cantados por Gil e Jorge Ben. Ou o Reconcâvo em Festa de Reis, com Caetano Veloso na porta de sua casa. Foi ele quem há uns anos me disse: falta Bahia no seu livro. Além de tudo, ainda tenho isso a agradecer-lhe.
E nem sete vidas bastariam para agradecer tudo o que o Brasil me deu e dá. Tudo o que o Brasil dá ao mundo, na sua infinita graça.
Dando a volta pela Lagoa, no Rio de Janeiro, certo fim de tarde, há cinco anos, quando me apareceu a ideia de “Deus-dará”, acho que acima de tudo eu precisava agradecer a sorte de ter vivido aqui, de ser outra por causa disso. Precisava de dizer o quanto devo a esse lugar. Como ele me deu a ver o milagre diário de estar vivo apesar de tudo.
Pisando nessas ladeiras do Pelourinho, nesse momento tremendo em que tudo fala do que parece se desmoronar, acima de tudo será hora de dizer o quanto, e mais do que nunca, esse país é soberano, alegria que conhece o mais fundo da tristeza, o sempre génesis no apocalipse quotidiano.
Esse país, eu o vi lutando quando os rios morrem, quando os rios enchem e levam tudo, porque a natureza ficou a saque de quem se acha dono do Brasil. A natureza e as vidas de quem perde quatro horas por dia para ir trabalhar, e ainda assim pára no sinal vermelho, cantando, quase sambando em cima de uma bicicleta de entrega ao domicílio.
Esse país é daquele índio guardando as histórias da avó, espalhando-as em contações. Daquela moça de cabelo duro que foi a primeira na família a ir para a universidade, como milhões nesses últimos 20 anos.
Daquele capoeira que num primeiro andar faz gingar África por cima do nome Pelourinho, e não deixará que roubem o tanto que há de bom nesses últimos 20 anos — torço para que não, sei que somos muitos a torcer.
Nome terrível, este, Pelourinho. Mas a Bahia fez dele outra coisa. Faz dele outra coisa, e essa coisa é que é linda.
O Brasil faz outra coisa do mundo, a toda a hora. Bastará um pandeiro, um violão, uma cuíca tocando algures, enchendo tudo de graça, mesmo à distância. Quanto mais a benção de pisar cá.
ALEXANDRA LUCAS COELHO
Alexandra Lucas Coelho (Lisboa, 1967) é jornalista e escritora portuguesa. Os seus livros incluem Deus-Dará (2016, Tinta da China), O Meu Amante de Domingo, (2014, Tinta da China), Vai Brasil, (2013, Tinta da China), E a Noite Roda, 2012, Tinta da China – Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB), Tahrir! (2011, Tinta da China, Viva México (2010, Tinta da China), Caderno Afegão (2009, Tinta da China) e Oriente Próximo, 2007, Relógio D’Água).
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Crédito da Foto: Diego Santoro.