As crianças de Zumbi que nos assombram

As crianças de Zumbi que nos assombram

Milena Britto – Professora do Instituto de Letras da Ufba

Zumbi e Acotirene se despediram, mas deixaram no aroma das comidas suas palavras que repicaram na orelha do mais velho por um bom tempo, pelos séculos da sua digestão, sobre as curvas e as escolhas do caminho. Sobre aceitar tirar os sapatos para entrar em cabanas inimigas e sobre não abandonar os combinados. Quando Acotirene e Zumbi saíram perceberam que ali entre as pernas de Ganga Zumba já estava também um menino que assoviava longe o seu nome, só compreendido por Candê. — Sou Camoanga!

A literatura que tem como núcleo a criança não é algo que interesse apenas às crianças. Não é segredo que um bom livro para um pequeno leitor será sempre um bom livro para um leitor adulto, entretanto, não é incomum um certo desdém dos críticos para com a literatura infantil e juvenil. Pensemos na pergunta já feita algumas vezes: um livro escrito para adultos que seja lido e admirado por crianças é literatura infantil? Interessa-me menos a resposta e mais o exercício de me ver como leitora a partir de provocações como essa.

Durante séculos, temos lido uma literatura homogênea, com personagens majoritariamente brancas, comportamento padronizado de heroísmo, bom comportamento para as crianças “civilizadas”, estereótipos dos grupos historicamente marginalizados —como mulher, negro, indígena, não urbano, gordo, gago, mudo, surdo, e por aí vai—, além de linguagem dentro dos padrões normativos.

Na escola de Candê formaram roda. Molecada pirilampa nos jogos de rastejar, de pegar pedaço de pano voador com a boca e de cair igual gelatina. Candê se achegou na roda com a pura sede de brincar, mas foram duas as lideranças que lhe negaram passagem e presença, unidas no escracho. O que tinham de graça também tinham de crueldade. Crianças.

—Você não! —os pequeninos Germano e Nívea com a língua arranharam sem dó – sai daqui, Candê sujo, cabelo de Zumbi!

O século XXI tenta afastar-se do mundo moderno e a grande questão para isso é a pluralidade do mundo refletida nas dinâmicas sócio-político-culturais. A infância padronizada, assim como a ideia do homem universal, também não interessa mais, nem aos leitores adultos e nem aos leitores crianças que, cada vez mais autônomos, questionam as representações estereotipadas ou os silêncios sobre si nos livros que leem.

O que é uma criança? Temos de nos fazer essa pergunta cada vez que um livro nos levar para esse lugar.

Falo tudo isso para chegar a Zumbi assombra quem?, de Allan da Rosa, publicado pela editora Nós, que me manteve cativa do começo ao fim, eu, adulta que sou. Não é sempre que um livro reúne tanta beleza de uma só vez: na abordagem, na temática, na linguagem, nas ilustrações.

Samanta. Em casa e na vila era só Manta. A “Manta de Dona Cota” como diziam na rua desenhando a linhagem da família. Seu cabelo era a lua cheia. Cheia cheia. Algumas vezes o menino se surpreendia sorrindo, beicinhos abertos pra aura que a mãe emanava. Chegava a ver estrelas dentro do cabelo dela, feito a noite negra, potente, formosa.

Candê é um menino, mas o que ele experiencia não se relaciona apenas à sua pouca idade e nem às dinâmicas com seus colegas da escola. É principalmente por conta de séculos e séculos de colonização, da cristalização do racismo e do preconceito, da História montada por adultos que essa criança – apaixonante diga-se – vai ter seus primeiros embates e conflitos na vida. Conflitos que vão do preconceito violento que sofre por ser negro às dúvidas sobre morte e vida; sobre a existência de outros mundos, a inquietação sobre a maldade; sobre a origem de seus antepassados; sobre a sua mãe e o seu pai, a sua avó; sobre música, remédio, dor, aceitação. Há muita ternura nas palavras de Allan da Rosa e um olhar agudo que vaza as visões dicotômicas do mundo.

Zumbi dos Palmares entra na vida de Candê e na nossa num interessante maquinar literário proposto por Rosa: uma história dentro da história. É assim que posso ver em prática todas as teorias decoloniais que acessamos nestes tempos, sem que o livro caia num experimento pedagógico simplificado e com intenção revisionista. Se podemos revisitar ali a história de Zumbi dos Palmares é porque essa história se eleva como metáfora de várias lutas, de sentimentos que se reconfiguram desde as fragilidades, de resistência e, sim, de orgulho da negritude.

O tio dizia do quilombo entocado nas serras, dos esconderijos que mudavam de lugar e Candê sentia o cheiro das trilhas, o estreito das cavernas subterrâneas, os ares da subida pra serra, o maciço dos muros de árvores e a caída das valas. Para ali levaria sua toalha mais grossa ou sua pele iria criar couro duro na sola e nos braços para não se arranhar? Pensou na Ladeira do Sabão, aquela volta da feira com o peso da sacolona dividido com a mãe, pisando devagar e atento para não desbarrancar.

[…]

Tio Prabin continua:

—Zumbi era linha de frente de Palmares. O quilombo tinha a felicidade guerreira da liberdade, da pele lambida pelas estrelas, mas vivia na febre. A tensão da invasão dos bandeirantes. Os quilombolas sabiam que ocupavam o que esteve à sua espera: a terra, a serra habitada pelas forças grandes e miudinhas que aguardavam quem se desembaraçasse das correntes e chegasse para conviver com ela.

Prabin amarra os pulsos com muita linha de costura e mostra que com um puxão não se arregaça essas algemas de fio, mas com calma e inteligência vai se desvencilhando pouco a pouco da prisão.

O livro não cede ao imediato de uma postura didática, como seria fácil fazer. E o principal instrumento para que isso não ocorra é a linguagem literária. O autor faz um grande investimento e tem um imenso cuidado com a linguagem do livro, aliás, as linguagens, pois aí incluo a linguagem visual. Como leitora da obra de Allan da Rosa, foi fascinante encontrar-me com a já conhecida dedicação ao vocabulário, ao ritmo desenhado a partir da musicalidade da oralidade ligada às culturas negras, numa dicção poética elegante e ao mesmo tempo lúdica, que já havia me chamado a atenção  no seu Reza de Mãe.

O cuidado e a dedicação do escritor por criar e trazer um universo que permita ao mesmo tempo a liberdade criativa das crianças e a reflexão sobre a vida, neste caso, principalmente a vida dos que tem pele preta e que são violentados de tantas formas, realmente nos levam a um encontro com um lado nosso que fica sempre latente: o nosso ser criança, que sonhou e chorou certamente em muitos maus e bons momentos.

Cota Irene, Prabin, Manta, Candê e Zumbi, entre outras personagens, saem do livro para alimentar a nossa vontade de ciranda, de caminho, de justiça, de convívio, de compreensão do mundo. Não se pode passar pelo livro sem tocar na mão de Candê e de Prabin, sem se deliciar com as vozes belamente criadas de uma esteira de personagens cativantes e algumas vezes misteriosos. Allan da Rosa se revela um excelente narrador múltiplo, pois fala para vários ali em seu livro, além de incorporar poesia e letras de samba que deixam o texto ainda mais luminoso. A riqueza de seu vocabulário está em juntar palavras originárias de línguas africanas e de um português que guarda uma prosódia própria de muitos falares que herdamos. É um passeio linguístico pela nossa história e pela de outros. Algumas vezes eu me sentia numa roda de capoeira, outras diante de uma cena vivida nas esquinas de minha cidade ou no seio da minha família. Outras vezes, sentia que estava diante de um sonho.

As ilustrações de Edson Ikê são também um presente aos olhos e à imaginação. O traço simples não polui e muito menos traz apelação desnecessária. A economia de cores e uso de elementos da cultura afro, numa composição um tanto minimalista, estimula a curiosidade e produz uma leveza e uma espécie de contraste interessante com o ritmo da narrativa. Não são ilustrações que apenas revelam a narrativa, mas a complementam.

As tristezas, as dúvidas comuns de Candê, os medos, o despertar para seu cabelo crespo e seus traços não aceitos de menino negro, as aventuras lúdicas, os passeios pelo passado, pelos quilombos, a descoberta de sua própria história fazem de Zumbi assombra quem? um livro inesquecível e, como leitora adulta, aprecio o livro tanto quanto teria apreciado se na minha época de menina tivesse me deparado com tão linda e interessante obra.

Zumbi assombra quem? / Allan da Rosa. Ilustrações de Edson Ikê: Editora Nós, 2017. 96 páginas.

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Milena Britto é doutora em Literatura Brasileira, Professora e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia. Atualmente coordena junto com a professora Nancy Vieira o projeto de pesquisa LITERATURA, POLÍTICA CULTURAL E MERCADO EDITORIAL: QUAIS LITERATURAS (RE)CONHECEMOS?, desenvolvido no Instituto de Letras da Ufba.

Imagem: Edson Ikê

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