A poesia em cubos de Carlito Azevedo
Milena Britto
Eu não deveria nem estar aqui.
Outro deveria estar em meu lugar.
Eu não fui treinado para isso.
É como se estivesse no menor daqueles cubos
Que se encaixam vinte vezes uns dentros dos outros.
Prólogo canino-operístico
Um dos livros mais impactantes de 2016 talvez não seja imediatamente compreendido por nós, leitores, em seu profundo questionamento acerca da poesia, da arte, dos homens das artes ̶ tanto os que a fazem quanto os que a apreciam ̶ frente a uma onda selvagem gigante que não termina de destroçar os últimos anos que estamos vivendo, neste mundo que já é futuro, que deixou para trás o Mundo Moderno, as verdades, as grandes perguntas. O Livro das postagens está escrito em cubos. Para acessar os cubos, do mesmo jeito que o cão de dentro dele -que nos fala como se fosse mais gente do que eu e você- trata de fazer para se livrar dos cubos, nós teríamos que fazer: resgatar da claustrofobia deste agora-cubo as peças mínimas capazes de recompor a vida. De recompor a luz-prisma que poderá nos levar, e ao cão, para fora. Fora de quê? Que cubo minúsculo seria este que deste século faz o pior circuito que já foi montado? Que vozes estão ecoando nos cubos, fora deles, por toda a poesia, na vida? Quem é este cão?
Eu não sei. Mas ler estes cubos–poemas do Prólogo canino-operístico foi uma das experiências mais intrigantes e fortes deste final de ano. Carlito Azevedo deixa o cão falar sem parar. O cão, por sua vez, ao reclamar que a responsabilidade que deram a ele deveria ser do autor, quem deveria estar ali, devolve a bola rebelando-se por servir de porta-voz. Estas aparentemente simples e óbvias relações escondem a rispidez e a ternura, tudo junto, do autor diante de um debate consigo mesmo sobre aquilo que mais ama na vida, a poesia. Há um reconhecimento do lugar da poesia no turbulento instante que ele próprio vive e, ao mesmo tempo, parece esquivar-se de simplificar o lugar da arte como o lugar apenas da catarse, seja de dor, de amor, de frustação, de alucinadas esperanças.
O poeta parece precisar do cão para dizer o que precisa dizer e empresta a sua voz a ele. O cão pode ladrar sem contenção, sem patrulhamentos e sem necessidade de verdades. O cão pode esfregar na cara do leitor quantas vezes já morreu de fome, quantas guerras já viu; pode até reconhecer a face de quem lhe afagou e de quem lhe repudiou. Pode ladrar para o outro e para ninguém: o que há é a existência magnífica de seu ladrar. Não há tradução possível para esse ato; não há que significar nada. O ladro é som que libera o mistério da existência ou de uma tentativa de interação apenas por ter uma sagrada presença na vida. O autor está ali e não está.
Ser cão-poeta pode ser uma forma de questionar a impavidez do criador nesta complexa relação da arte com a política. Com ações políticas. Arte panfletária, já se sabe ser consenso nas discussões sobre a tríade estética, arte, política: não se deve moldar a arte simplesmente para servir ao discurso político. A discussão desta questão, a polêmica, a discordância ou concordância não é tema agora, sei que o osso é duro.
O cão que é deixado no ‘palco’ sozinho usa a voz que lhe foi dada para ralhar com o autor que, segundo ele, não deveria ter se ausentado. Ao fazer isso, já se insere como autônomo e deslocado do sujeito autorizado:
O autor deveria estar aqui.
Assuma o que tem ou não tem a dizer.
O que posso enunciar além disso?
Vozes caninas e montagem
Eu me emocionei lendo e relendo o Livro das postagens. E parei para pensar porque o prólogo vem adjetivado. “Canino-operístico”. Confesso a minha inquietação diante do poeta assumindo as operações técnicas de sua arte, a montagem dessa obra, os recuos e efeitos testados, a ambivalência dos recortes, porque recupera vozes de poetas, pintores, cineastas, mas a verdade é que as desloca também. Elas passam a intervir em outro tempo, outra forma de se viver. Talvez por isso mesmo elas servem às novas feridas como se fossem as reações químicas experimentais de um cientista que tenta encontrar o antídoto de uma doença perigosa e misteriosa desde seu laboratório improvisado e desacreditado no fundo de um quarto. Ele não começa de um ponto zero. Sabe que se fizer isso não haverá como sair do não-lugar. O cientista vai buscar a fórmula que já curou doenças parecidas e ao mesmo tempo diferentes para juntar as substâncias de cada uma das fórmulas já usadas. Essa busca é anotada, testada. Essa é a experiência de cura.
Daí o meu susto: essa amplificação, essas vozes soando da boca de um cão… elas me alteram. Elas são reações químicas. Sei que as vozes estão aí para que Carlito Azevedo não esteja sozinho ao tentar dar conta do mundo e carregar a sua poesia consigo. E é para o leitor também não estar sozinho:
olho para dentro e está vazio
olho para fora e está vazio
um vazio todo atravessado
de gritos de dor
de amor
de revolta
não
nenhum grito de dor
nenhum grito de amor
nenhum grito de revolta
nem lua e nem despenhadeiro
só essas partículas
de poeira no ar
que eu pensava que fossem almas
Mas a poesia, como o antídoto, se der certo, não pode dar certo apenas para o poeta. E o processo de busca é o que definirá o acerto se um dia ele chegar, como se fosse uma nota inesperada que os músicos são forçados a encontrar:
“O contrabaixista Ron Carter dizia que sua função num quinteto de jazz (e ele tocava no quinteto de Miles Davis) era tocar sempre a nota que impedisse os outros músicos de tocar a nota que eles imaginavam que iam tocar, obrigando-os sempre a encontrar uma nota inesperada. Penso nessa frase, obsessivamente, mesmo sem ser músico, e acho que é porque no fundo a vida, tal como a vivo, é o meu Ron Carter, sempre fazendo soar a nota que me impede de tocar a nota que eu achava que ia tocar, e me obrigando a encontrar outra, à queima-roupa, numa fração de segundo.” (trecho do segundo poema do “Livro das postagens”, p56).
O cão parece estar sozinho. E com fome. Mas a solidão dele é marcada por não estar sozinho, por ter sido abandonado no lugar do autor em companhia daquelas vozes todas. Essa marca da poesia, da palavra no mundo desfigurado pelas palavras e seus excessos, o mundo claustrofóbico, com perfis e emoticons piscando sem parar na linha de um tempo que dizem ser o seu- ou nosso-, é acentuada pelo sujeito-lírico que busca e depende da “deixa” do autor, dos autores.
eu vim seguindo os gênios do ar
Miguel Gomes me conhece
eu vim porque me induziram ao erro
disseram: era repetir as palavras do autor
disseram: que esperasse
e esperasse
e não desesperasse
mas é preciso avisar
que até aqui o tempo passa
até na arcádia
a morte
e não chega de lado nenhum
a fala
a deixa
A figura canina é forte e simbólica. É possível que o cão do Livro das postagens seja uma referência ao cão do último filme de Godard, que também aparece de maneira explícita e implícita no livro, do mesmo jeito que o realizador português Miguel Gomes aparece nos versos acima.
No último filme de Godard, Adeus à linguagem, o cão é o intérprete do casal protagonista. Há a discussão da dificuldade de entendimento, entre as pessoas e entre as pessoas e o mundo. Mas talvez não seja apenas por isso que Godard está neste cão. O livro todo é uma operação de montagem. Uma montagem rebuscada que, na minha leitura, trata de conectar a poesia com os homens que, mais do que em qualquer outra época, enfrentam a escassez de um projeto político – ou artístico – que pareça atender a um ideal coletivo. Também para esses homens, eu desconfio, a poesia não mais poderia resgatar o sentido precioso de qualquer coisa.
Estes homens enfrentariam os sismos da Democracia, mito que ocupou as lacunas dos sonhos de outros regimes reclamatórios da igualdade entre as gentes. Regimes totalitaristas ocidentais foram vencidos; Comunismo saiu de cena e a Democracia, com esquerdas e direitas convivendo, aparentemente sustentava o peso discursivo das ideologias antagônicas. Os homens de várias partes do mundo ocidental, hoje, se dão conta, estupefatos, que este mito também já era.
Por isso a montagem como experiência deste “poeta do cão” me parece tentar chegar a uma fórmula, a uma poesia, à poesia que provavelmente se espalha não no palácio de criadores, mas nas latas de lixo das ruas em que cães ladram sem parar.
Carlito Azevedo não traz exatamente o cão intérprete do filme de Godard, mas toda a sua ideia de Cinema. O poeta parte de uma operação do próprio Godard, que acredita que a arte de cortar e montar é crucial para o cinema. Godard diz: “Sou pintor com palavras. Quero restaurar tudo, misturar tudo e dizer tudo”. Carlito assume a montagem como fundamental para a poesia deste momento, mas não apenas e tão só para deixá-la o mais esteticamente resolvida possível, mas, sobretudo, porque para “dizer tudo” neste momento de ruínas, é preciso mesmo misturar tudo. Mas a mistura não pode jamais fazer perder de vista o coração das palavras que, por sua vez, não pode perder de vista o coração do homem de hoje, afogando-se e afogando o mundo a sua volta.
Godard me conhece.
Me dessem um pincel
um pote de tinta azul-turquesa
e viam as maravilhas que posso produzir
com o aceno feliz ou furioso do rabo.
A montagem de Carlito Azevedo faz, como a de Godard fez com o cinema, uma poesia cujo dizer/ladrar seria a própria poesia. Não poesia feita de palavras, sons, ritmos, mas poesia como ação que pode dar às palavras todo o espaço fora do cubo, deslocando-a de um único curso histórico.
Eu penso também que a personagem do cão indica um lugar da arte em relação à política no Mundo Moderno. Quando o cão fala “Eu não deveria estar aqui”, “Outro deveria estar em meu lugar”, “Eu não fui treinado para isso”, se transferirmos essas frases para o domínio do político, ou da arte, o cão ocupa uma posição política, mesmo sem ser “especialista” nessa posição de responsabilidade, pré-requisito que todos nós da “sociedade moderna” pressupomos como critério para ser “alguém” com autoridade. No caso, aqui, a autoridade do poeta.
O cão não é nem especialista, nem um líder carismático que nos salvará com suas ideologias radicais e inspiradoras (sejam de esquerda ou direita…ou algo que destrói esse próprio binário). É um cão que não assume responsabilidade. Não é quem dá ordem, mas quem mostra a lacuna entre as ideias, a fonte de palavras, e quem é posicionado para ser a voz. Ele ilumina as discordâncias.
Na minha situação
um outro talvez aproveitasse
para anunciar o que bem quisesse
mas comigo não tem o bem quisesse.
Façamos assim:
cada um anote em um papel
o que deseja e coloque sobre a cena.
Ou ainda, subam aqui.
Falem à vontade.
Carlito Azevedo deixa o leitor de uma certa poesia preso nos cubos, como o cão, mas ao contrário deste, os leitores precisam recorrer à confiança de que o poeta está ali, mesmo que numa profunda crise com a arte, consigo mesmo. É este poeta que vai à Rússia para conectar vida e poesia: “Maiakóvski me conhece”. Carlito Azevedo vai montar cenas aparentemente desconexas, através não apenas de imagens, mas sobretudo de vozes de poetas. Há até mesmo um certa relação deste cão com o Stray Dog Cafe, associado a artistas sem lugar, aos abandonados, aos que lutavam fora do sistema. O stray dog foi o refúgio de muitos escritores russos do século XX em San Petersburgo. Ali estiveram poetas como Maiakovski e Anna Akhmatova.
Não sei se também ali a poeta Marina Tsvetaeva não teria estado, mas o cão apenas nos fala, no Livro das postagens:
Marina Tsvetaeva me conhece.
Certa vez, em plena fome
Dos primeiros anos da revolução
Que em breve completará 100 anos,
Ela esteve sentada numa calçada
Sem ter o que comer ou dar de comer
Às suas filhas (uma morreria de fome)
Quando me aproximei magro
Acreditando que um coração de poeta
Sentiria pena de mim
E me livraria da cartolina
Que me tinham pendurado no pescoço
Com dizeres escritos a lápis:
Matem Lênin e Trotsky ou eu serei comido.
É um poema longo esse prólogo. Temos tempo com o cão que passa o tempo reclamando a presença do autor, não só porque a poesia precisa de uma fonte, mas porque a vida política precisa de seus responsáveis:
O autor deveria estar aqui.
Vou morrer repetindo a ladainha.
Será assim que ocorre numa guerra?
E ninguém distribui máscaras de gás?
E ninguém mede a toxidade do ar?
E ninguém abre a caixa de munições?
O cão desloca imagens, desloca obras de teatro, de cinema, passagens bíblicas, como uma referência à cena bíblica recuperada do Film socialisme de Godard em que o filho, na cena que se refere a Abraão e Isaque, pergunta:
Eu vim porque me trouxeram
eu disse: estou vendo a lenha
eu disse: estou vendo o altar
eu disse: estou vendo a faca
mas onde está o cordeiro?
Onde está o cordeiro é a pergunta triste que o filho faz. Que nós, leitores, fazemos diante dos tantos nós sob sacrifícios em rituais contemporâneos de guerras e violências urbanas, cotidianas, estas contra negros, mulheres, travestis, indígenas, pobres, árabes, imigrantes… mas onde está o cordeiro?
Há vozes femininas presentes em todo o livro. Mulheres como Rosa Luxemburgo e Rosmarie Waldrop acrescentam lados diferentes de cruzamentos poéticos. Sobre esta última, sob versos entre aspas escondidos na fala do cão, os rituais que não se concluem no poema:
“Me pareceria que morreria
se meu nome não me tocasse
ou se ele me tocasse apenas
com sua extremidade,
deixando o interior acessível
a muitas antenas – uma chuva ao acaso,
desabando das nuvens.”
O que faz o poeta? Escreve em cubos. Numa tentativa de decifrar este trecho misterioso, jogado na fala do cão, fui atrás dessa citação, tentando extrair de lá alguma revelação que acrescentasse ao meu cubo alguma luz. O trecho foi retirado de “O livro dos perfis”. O trecho mais expandido nos leva a esse lugar misterioso da linguagem, da resistência das línguas no lugar de comunicar bem, de conectar os seres pelas palavras comuns:
Inferi de imagens que o mundo era real e portanto se pausava, porque quem sabe o que pode acontecer se falamos a verdade enquanto subimos escadas. De fato, tinha medo de seguir a imagem até onde estendia para a realidade, posta ao lado como uma régua. Me parecia que morreria se o seu nome não me tocasse ou se ele me tocasse apenas com sua extremidade, deixando o interior acessível a muitas antenas – uma chuva ao acaso, desabando das nuvens. Você riu e contou para todos que eu tinha confundido a torre de Babel com Noah na sua embriaguez.(Tradução livre do original por Sarah Rebecca Kersley para esta resenha).
Uma poesia off-line para deixar a vida- política online
O poema que dá título ao livro, “Livro das postagens”, dá um salto ornamental, perigoso, cheio de piruetas, em direção ao céu sem fim. Um salto de baixo para cima.
Andrea R. Postou esta foto (Facebook)
com a legenda
Eu na Embaixada da Argentina
quando os exilados brasileiros
esperavam por notícias sobre
qual país iriam depois
do golpe no Chile
em 1973
[aqui tem a foto de uma menina em uma escada de um edifício]
E então só consegui pensar em Z.:
esta menina está parada como a flecha de Zenão.
(…)
8 anos separam
essa foto
da embaixada argentina
de uma foto
de j-l godard
pendurado em uma parede
com belmondo
talvez para expor melhor
o que quer
que ele e anna karina façam
(ensaiam para uma tomada
de pierrot le fou)
pois na foto seguinte
(encontrada no twitter de shaun cola
https://twitter.com/shauncola/status/689811801098342400)
já vemos anna karina
no mesmo local
na mesma posição
mas onde godard parecia
ter as pernas trêmulas
e medo de cair
anna karina paira
como uma garça
a menina na embaixada
não parece tremer
nem ter medo de cair
ainda não tem
onde cair
J-L G
em
adeus à linguagem:
a sociedade está
disposta a aceitar
o assassinato
como meio
de reduzir
o desemprego?
É um salto de baixo para cima porque as vozes que falavam com o cão agora se misturam à voz do poeta, às vozes de todas as poetas e não poetas que escrevem ou aparecem no facebook do poeta, no inbox do poeta. Essa vida que fica ali parada, que tem seu curto espaço útil antes de morrer nos arquivos do facebook, do google e de todas as companhias que agora são donas dos nossos perfis no mundo virtual, é recuperada pelo poeta Carlito Azevedo, em processo de montagem que revela tanto o reconhecimento de que a poesia é poesia porque reconhecida é pelos seus efeitos estéticos, quanto a vida que teima em se proliferar pelos posts sem sabermos como, e sem sabermos quem resistirá se uma falha houver em todo esse mundo em que as nossas imagens assumem o nosso lugar político.
Eu queria seguir falando do segundo poema neste livro de apenas dois poemas longos, mas eu sei que a leitura não deve nunca ser única. Para que serve a minha leitura? É preciso que venha outra voz, que o meu lugar não é nem este. Eu estou aqui porque um leitor de dentro do cubo me deixou entrar para espiar o que eles veem todos os dias desde o minúsculo espaço de um cubo dentro de vinte cubos. Eu quero seguir com poesia, e também com a poesia de Carlito Azevedo, a poesia que eu não li porque não se pode simplesmente ler coisas assim. É preciso vivê-las. É preciso que os homens deste nosso tempo vivam mais. Vivam amando mais e se perdendo menos.
você viaja agora mesmo para cá
a dez mil pés
vindo para cá
com os componentes do balé cubano
a dez mil pés
(meu pulso desacelera)
que voltam de uma turnê
de seis meses
pelos países socialistas
mesmo que nenhuma carta
inbox e-mail telefonema
tenha me anunciado nunca
nada assim.
De repente penso em alemães
fugindo pelo esgoto
da cidade
ocupada
penso no homem vendo o sexo
de outro homem através
do filó sujo
do véu do mosquiteiro.
Estou vivendo mais os poemas
que traduzo
do que a vida em que não faço
outra coisa além de anotar
esses falsos cálculos
de distância
de afastamento
Livro das postagens / Carlito Azevedo: 7letras 2016. 74 páginas.