O TEATRO DO MUNDO – PARTE UM
Catarina Lins
Theatrum Orbis Terrarum
(semi-ready-mades para os não-esquiadores)
I.
é perigoso
faz calor
é frio
desejável
machuca
é doloroso
dá comichão
é sujo
assustador
é invulgar, ex-
traordinário
é engraçado, curioso,
suspeito
é interessante,
divertido
precioso
é remoto,
solitário.
II.
sinto-me
inquieto, apreensivo
tenho calor
eu quero, desejo
sinto uma dor
extrema
eu disse
o quê?
eu disse: deixa
pra lá
III.
adora comer
maçãs e ovos e queijo
e sobretudo batata
doce e apoiar
as maçãs mordidas
sobre a mesa ou livros e não
usar pratos ou usar três
para uma única coisa e ir à praia aos domingos mesmo que seja o dia mais cheio
e ir
ao meio dia mesmo que seja o sol
mais quente e
abandonar
as sementes
sobre a superfície
da escrivaninha e deixá-las
caírem no chão e não pegá-las ou abandoná-las
na cama e não
pegá-las e deitá-las
sobre o azeite
e comer
as maçãs inteiras
e deixar
só o cabinho
e as sementes e se sente
como um cavalo e gosta
do barulho dos dentes cravando e arrancando e triturando pedaços grandes
de maçã.
–
com a banana é diferente é pastosa gosta dela
bem madura
e gosta
de ir à praia aos domingos antes
dos grandes
temporais – dá um senso de urgência
e gosta de ler o mesmo poema quantas vezes
forem necessárias
às vezes por um dia inteiro ou uma semana inteira ou até mesmo um mês inteiro e, eventualmente,
se encontra um que seja
suprême
é capaz de ficar naquele único
por anos
IV.
as palavras
vão se
formando atrás
de você
o ônibus
chega o seu sorvete
chega você pergunta
qualquer coisa que eu não sei responder eu só
penso que é impossível
comer todos
esses ovos
fritos na minha frente tudo
com tomate fica bom tudo
que é belga é bom
cerveja, chocolate, couve
de bruxelas e dedicatórias para pessoas cujos nomes começam
com a mesma
letra – tudo que é belga é bom, a revolução,
o tratado de verdum, o clima fresco, o sistema judicial baseado no sistema romano
-germânico que tem sua origem no Código
Napoleônico, a batata frita, a cerveja trapista, o Philippe Gilbert e
você, que não é exatamente
belga mas você, os pintores belgas, os bodybuilders belgas e você,
que não é exatamente o Abraham Ortelius nem o Jacques Brel mas você
sabe exatamente que queria dizer quando disse
“belga”?
V. (“Li
teus poemas”)
e o que eu queria te dizer
é que os ursos
normalmente vencem
as batalhas contra humanos
e que os donos das cidades ainda não perceberam certas coisas
só porque ninguém
os ensinou
nada
ainda
e que os city-tours de meio-dia
pelo distrito judaico
de Cracóvia
serão sempre
uma opção
se você souber
usar o SegWay
e que todas as pessoas no planeta terra
têm histórias
como as do martelo
como as do arado
como a da tatuagem no braço
de um sushiman negro
quando vista através do balcão
onde crescem as pilhas
de salmão
e atum
embalados
como as do sudoeste antes
do fim
do mundo
e da nossa galáxia
e com toda a beleza
temporária
– você se lembra de ter ido
a meu encontro?
e das escamas, do vinho
e do que havia sido
dito
antes?
e de como a luz entrava
e depois saía e do vento
cósmico
e o calor
que se desprendia
depois?
você se lembra de como o couro
e as superfícies frias
continuaram
imóveis?
VI.
tenho medo que tudo desabe
“tudo”
como em:
tem ideia de tudo que tive que fazer
só pra te conhecer?
e chegar até aqui
no meio do Teatro
do Mundo?
tudo – enquanto comia feijões no restaurante indiano
e tomava café com leite e açúcar no subsolo
duma galeria do centro
em chamas
e tomava o metrô para o catete só
para comprar
roupas usadas
tudo isso enquanto
um namorado americano comprava
os sonetos de benjamin
e lia, num vagão em Seul,
que ambos ainda estavam
sós
e porque não soubesse
cozinhar – só ovos –
pôs-se a lavar e a picar
beringelas e a pôr no forno
e não davam certo, assim, postas no forno
e o que se seguia era uma ginástica
e mudava as beringelas de lugar só
pra no final ter o prazer
de comê-las
com cominho –
sendo a primeira comida em anos
que dava certo
(além é claro dos ovos
estrelados
mexidos
em omeletes
cozidos
rancheros
ou poché)
VII. “parece pudim”
& prende
os cabelos de uma forma
completamente antiestética
mas ao menos deixa a nuca
descoberta
isso
em tempos assim
já vale alguma coisa
VIII. (“é um retrato
chinês”)
– descreva
quem você é
– explique
por que os teus poemas nunca têm
a palavra ( )
– explique
por que você foi embora exatamente hà 4 potes de geleia atrás
– descreva
o que significa fazer trufas e faxinas
por prazer
IX. (“A voz vem de dentro da pessoa”)
você de calças lendo
uma louca que diz
da queda
da república
eu
vendo a foto da adília-criança-
amuleto
é uma forma
de coragem
é bem a forma
da barriga
sob a camisa
do Morrissey
é bem você tentando adivinhar
você
tem todo o direito de tentar
adivinhar
porque quando a terra já for
uma enorme pedra de gelo
pairando
e o mundo
sublunar
se inverter completamente – mas um hambúrguer não
deve (nunca!)
ser comparado
a um golpe
de estado
e então você
que não é exatamente belga mas você
que quer saber o nome daquilo
que ainda não tem nome
e você
que quer ir embora sempre que chove
e usa botas que te fazem sentir
adulto
e antigamente
se preocupava se teríamos tempo ou pêlos
nas canelas
e se tudo isso era mesmo
uma forma
de coragem
X.
um abismo
atrai o outro
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Catarina Lins nasceu em 1990, em Florianópolis (SC). Formou-se em Letras pela PUC-Rio e atualmente cursa mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na mesma instituição. É autora de Músculo (2015) e Parvo Orifício (2016).
Os livros de Catarina Lins estão disponíveis na livraria Boto-cor-de-rosa.
Sobre Textos fora do mapa: Aqui publicamos poemas, ficções, resenhas e crônicas inéditos de escritores brasileiros e não brasileiros, que muito generosamente escolheram compartilhar aqui. Tudo que você encontrar nesta seção aparece aqui pela primeira vez. Textos fora do mapa, assim como todas as seções deste site, inclui textos em diferentes línguas conhecidos ou em nenhum idioma previamente conhecido.