AMOR POR MARTHA ARGERICH
Carlito Azevedo
“Porque a pintura de Van Gogh não ataca apenas um certo conformismo dos costumes,
mas as próprias instituições. E até a natureza exterior, com seus climas, suas marés e
suas tormentas equinociais não podem mais, depois da passagem de Van Gogh pela
Terra, conservar a mesma gravitação.”
Antonin Artaud
Crises acontecem.
A vida vai sendo vivida na “mesma gravitação” de sempre, até que…
E de nada adianta saber de cor o poema de Robert Browning que Borges usa para terminar sua famosa conferência sobre a poesia: “Justo quando nos sentimos mais seguros, vem um por de sol, a morte de um amigo, um coro final de Eurípedes, e somos lançados novamente no Grande Talvez”.
A crise vem.
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Então pensei que não queria mais escrever poesia, nem ler poesia, nem nada sobre poesia. Música: só instrumental.
Kant dizia que música instrumental, sem texto algum, era “mais prazer do que exatamente cultura”.
Ok, vamos ao prazer.
Mas como quem foge de algo. Como quem não se pode dar ao luxo de buscar a liberdade e busca apenas uma saída, uma fuga (Kafka).
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E quando viesse (sempre vem) o desejo de ler, de ficar isolado no quarto, deitado na cama com um livro, prazer maior da infância que a vida adulta tenta reproduzir, que fosse uma biografia de pintor, de arquiteto, de músico. No caso, caiu-me nas mãos a biografia da pianista argentina Martha Argerich, que 9 entre 10 rankings elegem a número 1 do mundo.
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E se aprende que sair da gravitação de sempre pode não ser o fim do mundo. Que não existe nada fora do Grande Talvez, que viver é vivê-lo. Só fica mais difícil esquecer, ouvindo as oitavas de Martha Argerich, que giramos ao redor do sol numa velocidade de 107 mil quilômetros por hora, e 1700 mil quilômetros por horas ao redor do próprio eixo.
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Imaginem que a pequena Martha é colocada numa creche. E que, na sagrada hora da siesta, uma das educadoras da creche dedilhe no piano algumas canções de ninar para adormecer as crianças.
Imaginem que Martha, aos dois anos e meio, depois de realizar os muitos desafios que a sua turminha de colegas de creche adorava lançar “à menina que nunca chora” (desafios como “duvido você subir naquele banco”, “duvido você subir naquela mesa”), se veja na obrigação de realizar um desafio que mudaria sua vida: “Duvido você tocar aquele piano”, disse um menino, cujo nome, injustamente, a história esqueceu.
A pequena Martha não só subiu ao piano como executou, sem errar uma nota, todas as canções de ninar que, entre dormindo e acordada, ouvia na creche.
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Descoberto esse “segredo”, seus pais são convocados.
Não, eles não têm um piano em casa.
Não, a pequena Martha não tem uma professora de piano.
Aprendeu de fato no entressono, gravando (ou capturando) em sua poderosa teia sensível todas as notas, seus tempos, sua ordem. (Anos depois, já consagrada, aprendeu também, entre dormindo e acordada, um peça de Prokofiev que uma amiga ensaiava no quarto ao lado e que nunca tinha ouvido).
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Aí surge a tempestade equinocial.
Aí é de novo impossível retornar à gravitação de antes na vida do casal.
Aí é decidir deixar as coisas como estão, ou assumir que a vida pode passar a gravitar ao redor da menina.
Compram um piano e deixam no seu quarto.
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Cortamos para a aula do professor de piano Scaramuzza, responsável por uma febre pianística na Argentina dos anos 40.
Martha tem 4 anos e escuta seu professor dizer que uma peça executada apenas com técnica é como uma bela roupa desfilando num salão sem ninguém dentro.
Que tipo de compreensão pode tirar disso?
Pouquíssimos anos depois, numa sala de cinema (sua verdadeira paixão então), quente como podem ser as salas de cinema da época, Martha segue um ritual muito simples: sempre levada pela avó, aproveita a escuridão do ambiente para tirar toda roupa e assistir ao filme totalmente nua. Era assim que amava ver os filmes. Mas num dia especial um vento produzido por um dos muitos leques com que se abanavam as senhoras no local envolve seu corpo de modo diferente, ela sente um arrepio de prazer que não conhecia até então. Lembra da frase que seu professor disse há tempos e se sente feliz por concluir que ela tinha alguém dentro dela, ela era alguém dentro de nenhuma roupa.
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Esta crônica bem poderia ser dedicada a Adriana e Dado.
Num encontro casual no café-cine, no Largo do Machado, num cair da tarde do último sábado antes do outono, falávamos que uma das coisas mais esquisitas do Facebook era que ele passava a “pautar” nossas conversas mesmo fora dele. Discutíamos e conversávamos ao vivo aquilo que o FB tinha decretado como o “assunto da semana”.
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Pautar a própria vida. Lema dos que vivem fora da pauta.
Combino com outro grupo de amigos que a pauta das próximas conversas nossas deve obrigatoriamente passar pelo Conto-Zero, livro novo de Sérgio Sant’Anna, pelos escritos psicanalíticos de Louise Bourgeois e pelo filme novo de Jim Jarmusch: Patterson, que tem a poesia como protagonista.
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E, se possível, schipar Martha Argerich e Vladimir Horowitz.
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“Preferiria não”
Bartleby, de H. Melville.
Mas o que eu queria mesmo dizer é que Martha, a pianista nº 1 do mundo, é também a maior canceladora de concertos da história. Perto dela, Tim Maia e João Gilberto são funcionários-padrão. Sempre me identifiquei com os dois, agora, ainda mais, com ela.
Uma vez perguntaram a Manuel Bandeira se ele acreditava em inspiração. Respondeu que acreditava num tipo de inspiração sem a qual o sujeito não devia nem atravessar a rua.
É isso.
É simplesmente isso.
É esse o motivo alegado por Martha para o cancelamento de suas apresentações: não está inspirada.
Os adeptos do “profissionalismo”, talvez não sem razão, gritarão.
Eu entendo perfeitamente quem cancela.
Faltou inspiração.
E note-se que não foram nada leves os tremendos prejuízos financeiros que assumiu por conta desses cancelamentos (pelo menos até impor, caso único na música erudita, sua vontade: só assinaria contratos após a apresentação, para poder cancelar sempre com liberdade, sem ter que levar uma facada na conta bancária).
Em compensação, quando está inspirada, nada a impede de tocar. Resumo aqui as informações colhidas na biografia da pianista escrita por Olivier Bellamy: Martha tocou uma hora após extrair um dente nos Estados Unidos, com 39º de febre no Japão. Com estafilococos no nariz em Riga, numa cadeira de rodas depois de um acidente de carro no Quebec, com a arcada superciliar recém-costurada na Suécia após outro acidente de carro. De mini-saia na Alemanha porque sua bagagem não chegou a tempo, após dormir num albergue da juventude em Praga e procurar sozinha pelo teatro pois esqueceram de buscá-la no aeroporto, com terríveis dores nas costas em Rotterdam… Consta que algumas dessas contam entre suas mais brilhantes apresentações.
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Essa “falta de inspiração” vem, 96% das vezes, acompanhada de um questionamento terrível sobre se é aquilo mesmo que se quer da vida. Se não dá tempo de mudar de vida, fazer jardinagem, química, medicina. Quando, bem nova, já tinha conquistado alguns dos concursos internacionais que a projetaram mundialmente, e era um mito na Argentina (vivia então em Viena), Martha deu um susto no seu país. Durante uma série de apresentações em Buenos Aires, o genial Friedrich Gulda, que levou Martha para Viena e fez dela sua única aluna durante toda a vida, declarou ao jornal La Razón que continuava achando Martha a número 1, mas que duvidava muito que sua carreira durasse mais dois anos considerando a vida desregrada que levava e o fato de questionar tão fundo e tantas vezes se devia continuar se dedicando ao piano.
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Como não pensar em outro milagre de precocidade.
Jean-Nicholas Arthur Rimbaud.
O que, de tanto questionar, acabou indo longe demais, barco bêbado, para o lado de lá.
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Martha sempre foi uma grande leitora.
Pré-adolescente, exercitava a mão esquerda no teclado enquanto a direita segurava um livro de Oscar Wilde, que devorava com paixão.
Chegou a escrever teatro surrealista, baseada em seus pesadelos recorrentes, como aquele em que, no palco, esquece a nota que deve tocar a seguir enquanto a polícia invade o teatro e espanca a platéia.
Quando ainda não entendia completamente os próprios cancelamentos, na véspera de uma importante apresentação, e motivada pela noção de “ato gratuito”, que aprendeu com André Gide, outro autor de sua preferência, e talvez o preferido, Martha simplesmente pegou uma faca de cozinha e cortou a mão direita. Assim se justificava. Ainda não tinha coragem de dizer: faltou inspiração. É tão difícil. Mais fácil até a faca.
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Fevereiro e março foram horas de imersão nos discos, dvd’s e livros sobre Martha Argerich.
Só indo tão fundo na alma de alguém que o tempo todo questionou o fazer consegui reencontrar pelo menos um pedacinho da vontade de tornar a fazer.
c.a.
Carlito Azevedo (Rio de Janeiro 1961) é poeta, tradutor e editor. Também é cronista da Boto cor de Rosa.
Foto: “Martha Argerich’s Hands”
de Marco Anelli (Roma)
Fonte: https://thesquirrelsgranary.com/2014/03/27/martha-argerichs-hands/